29 de janeiro de 2025
Reportagem especial
Que educação pública é essa?
Com o início das gestões municipais de 2025, Fórum Grita Baixada expõe os desafios de alunos, militantes, professores e sindicalistas da rede pública de ensino na Baixada Fluminense em meio a uma série de precariedades e desrespeitos históricos.
Ano novo, realidade antiga para professores e estudantes da rede pública da Baixada Fluminense. Enquanto as novas gestões executivas municipais e Câmaras de Vereadores se organizam para o ano que se inicia, FGB apurou que educadores continuam a enfrentar seus cotidianos com salários atrasados, desestímulos profissionais, adoecimento físico e mental, falta de recursos pedagógicos e infraestrutura precária. Enquanto isso, iniciativas coletivas como a Rede de Educação Popular da Baixada e de Pré-Vestibulares Comunitários (PVCs) como o Preparatório Comunitário Paulo Freire, de Lote XV, em Belford Roxo, e da Vila Operária, em Nova Iguaçu, emergem como farois de esperança enquanto promotores de conhecimento com qualidade. Alunos que vivem em territórios economicamente empobrecidos, muitas vezes marcados pela violência e pela escassez de oportunidades, lutam diariamente para permanecer nos estudos. Apesar das dificuldades, a região segue resistindo.
O Dia Internacional da Educação, celebrado em 24 de janeiro, nasce de uma resolução aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 3 de dezembro de 2018. Embora, segundo declaração da ONU, a educação seja definida como "fundamental para a promoção da paz e da igualdade,", além de "essencial para se construir uma nação com desenvolvimento e igualdade social", na Baixada Fluminense, o que se observa é que a profissão de educador(a) da rede pública ainda é uma prova de resistência em função e uma série de fatores que submetem a categoria a uma série de violações.
João Pedro Bernando tem 18 anos. Natural de Nova Iguaçu, ele acaba de concluir o ensino médio em uma instituição particular com tradição na cidade. Porém, em uma determinada época da vida, as dificuldades eram maiores. A mãe, professora, para garantir o sustento dos três filhos, atravessava extenuantes jornadas de trabalho, lecionando em tempo integral na rede pública do município.
- "Ela precisava despender parte do salário para garantir que os filhos dela estivessem bem, enquanto ela tinha que se responsabilizar pela educação dos filhos dos outros", diz João.
Em função de um cotidiano com dedicação exclusiva ao ofício de lecionar, João afirma que a mãe sofreu, ao longo do tempo, processos de adoecimento físico e mental, além de conviver com formas de precarização em sala de aula que contribuíam para a piora do quadro.
- "Era uma situação complicada, dava para ver as olheiras muito pesadas que carregava desde que a conheci. Porque você passa o dia inteiro trabalhando e quando você chega em casa, ainda tem que cuidar das crianças. A profissão de docente exige planejamento, preparação das aulas. Então, isso tinha que ser feito no final de semana, ao mesmo tempo em que você tem que cuidar da casa, das tarefas domésticas, dos filhos, sobrando pouco tempo para lazer Isso gerou nela um alto nível de estresse", explica o estudante.
É o caso da professora Liliam dos Santos, também da rede pública de Nova Iguaçu. Com 27 anos de magistério, tinha como uma de suas ferramentas de trabalho, a clássica lousa verde com escritas à giz. Ela se lembra que, assim que tomou posse, naquele ano de 1996, então com 26 anos de idade e 48 alunos para ensinar, vivenciou a primeira crise da categoria por causa de atraso no salário dos professores.
- "Os professores recém-empossados nesse concurso começaram a se revezar junto com os mais antigos, que estavam impedidos de sair de casa porque não tinham dinheiro para pagar a passagem dos ônibus para lecionar nas escolas. Começar assim é muito ruim. A greve foi inevitável", conta Liliam.
Se o poder público dificultava as negociações trabalhistas já naquela época, dentro das unidades de ensino a situação não era menos complexa. Liliam afirma que ela conviveu com diretoras de escolas abusivas, controladoras, embora eleitas democraticamente pela categoria, mas com comportamentos bem anti-democráticos. Segundo a professora, algumas delas não tinham a disposição de implementar mudanças "simples" que poderiam resultar em melhorias cotidianas perante os alunos como, por exemplo, providenciar a capina adequada para que as crianças utilizassem as quadras esportivas, então tomadas pelo mato, para as atividades físicas. Além disso, com baixos salários, a solução foi trabalhar em mais de uma escola, triplicando uma jornada de trabalho. Pois, além de ser professora em duas unidades básicas de ensino, ela é mãe.
- "Não ter tido o reconhecimento da direção e das colegas de trabalho, foram e são fatores que dificultam nosso cotidiano", afirma a professora.
Longe demais das escolas
Pesquisa publicada na revista "Educação Pública", vinculada ao Centro de Ciências e Educação Superior à Distância do Estado do Rio de Janeiro (CECIERJ), intitulada "O adoecimento do professor da Educação Básica no Brasil: apontamentos da última década de pesquisas", de autoria da dupla de psicólogos Kelen Braga do Nascimento e Carlos Eduardo Seixas, apontou as principais questões relacionadas às condições de trabalho de educadores(as). Foram analisados 25 artigos, produzidos entre 2009 e 2019 em que são problematizadas questões como infraestrutura inadequada em sala de aula, salas apresentando desconforto térmico (ausência de aparelhos de ar-condicionado nos meses mais quentes do ano), número excessivo de turmas e ausência de recursos materiais e humanos. Além de denúncias sobre a difícil acessibilidade às escolas em função de longas distâncias das residências dos professores e dificuldades em lidar com alunos com deficiência.
Sobre essas duas últimas questões, Samanta Pereira, diretora do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação, núcleo Nova Iguaçu - (SEPE/NI) afirma que a defasagem salarial e a falta de estrutura nas escolas estariam sobrecarregando professores de, pelo menos 32 das 147 unidades básicas de ensino da cidade, em função de grandes deslocamentos para as áreas rurais. Junte-se ao fato de a prefeitura não conceder a chamada gratificação de difícil acesso aos profissionais de educação, excluindo agentes de apoio, orientadores educacionais e pedagógicos, estimuladores materno infantis e outros técnicos que atuam no assessoramento administrativo e pedagógico das escolas. Há casos, por exemplo, de profissionais que moram no centro do município, mas precisam lecionar em escolas longínquas, como por exemplo, no bairro de Jaceruba, a quase 34 km de distância, praticamente na divisa com o município de Japeri.
- "Some-se a isso, o fato de que o transporte deixa muito distante da escola", afirma Samanta.
Segundo Samanta, embora as escolas públicas do município de Nova Iguaçu tenham uma boa cobertura no que se refere à implementação das chamadas salas de recursos multifuncionais, espaços dentro das unidades de ensino que oferecem atendimento especializado para alunos com deficiência, parte das políticas de inclusão educacional ainda esbarra em alguns entraves, especialmente às crianças e adolescentes com Transtorno de Espectro Autista (TEA).
- A Secretaria Municipal de Educação tem entendimento que, para essas crianças frequentarem o ambiente escolar da sala de recursos, elas precisariam de um laudo médico que ateste essa condição. O problema está relacionado à dificuldade em se obter esse documento através do SUS, pois é necessária uma investigação clínica que pode demorar entre três e quatro anos para a identificação do transtorno. - explica Samanta.
O problema é que, segundo a sindicalista, a Secretaria Municipal de Educação da prefeitura de Nova Iguaçu não sabe informar de qual instância governamental partiu essa orientação: se federal, estadual ou do próprio município.
Além disso, com os salários pouco atrativos, nem todas as vagas disponibilizadas no último concurso público foram preenchidas, resultando na continuidade de cargos comissionados ou terceirizados com salários bem abaixo do mercado, impedindo o acesso de mais profissionais especializados para administrar esses casos e compor o quadro de servidores do município.
Em São de Meriti, uma situação "menos pior"
Segundo Juliana Drummond, coordenadora Geral do Sindicato dos Profissionais de Educação (SEPE)/Núcleo São João de Meriti, houve avanços e retrocessos no município. Entre as vitórias, a chegada de 720 novos professores concursados, em 2023 e 2024, de acordo com divulgação no site da prefeitura. Entretanto, os aposentados da Educação da cidade ainda não receberam o pagamento do salário de dezembro, e o pagamento do 13º salário ainda não está nos planos do executivo meretiense.
- "O novo prefeito, no dia primeiro de janeiro, publicou no Diário Oficial um decreto que versa sobre o acompanhamento dos gastos com as folhas de pagamento dos ativos e inativos. O decreto diz que os órgãos terão até 100 dias para apresentar seus relatórios à prefeitura e quais providências serão tomadas. Vamos ver o que acontece." diz a educadora.
Outro problema apontado por Juliana é a escolha para os quadros de direção das escolas municipais de São João de Meriti. O cargo sempre foi visto como indicação para articular acordos e fortalecer o loteamento político-partidário entre o governo e os vereadores da cidade. Apesar de o edital ter sido publicado, onde se definia o passo a passo e os critérios para quem quisesse concorrer às vagas de forma idônea, há especulações de que servidores ligados ao governo estariam estudando maneiras de prejudicar o atual processo.
- "Por enquanto, ainda existe uma consulta pública entre a categoria, através de conselho escolar, para a ocupação desses cargos, mas estamos temendo a volta do antigo formato de indicação política, permitindo que as escolas sejam, mais uma vez, reduto político dos vereadores. Dessa maneira, defendemos que qualquer decisão tomada por parte da nova gestão ligada a essa temática, se dê em amplo diálogo com acompanhamento direto da direção do sindicato e do Ministério Público", afirmou a sindicalista.
Em Duque de Caxias, 9 anos sem reajuste salarial
Rose Cipriano é professora da educação básica em Duque de Caxias e coordenadora do SEPE na cidade. Assim como Samanta Pereira, de Nova Iguaçu, ela também aponta como grande desafio, o processo de inclusão no ensino caxiense, que deveria garantir a contratação de mais especialistas para os alunos com deficiência. Entretanto, o que chama atenção é a longevidade de uma negligência da prefeitura local: quase 10 anos sem qualquer reajuste salarial para os docentes. A direção do sindicato chegou a protocolar ofício solicitando audiência com o novo prefeito, Netinho Reis.
- "Neste ano, os profissionais de educação e todo funcionalismo municipal completam 9 anos anos sem reajuste. Além dos atrasos dos salários, em especial das aposentadas e aposentados, não há na administração da cidade um calendário de pagamento, mesmo havendo uma lei municipal que garante o pagamento até o quinto dia do mês", explica Rose.
Ela afirma, também, que o limite determinado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, referente aos gastos das prefeituras com servidores públicos locais está abaixo do teto de 54% permitido há pelo menos dois anos. O que não explicaria a falta de investimentos no magistério municipal, já que a alegação é de insuficiência de verbas.
- "Não criamos mais expectativas sobre a gestão da Família Reis, afinal Netinho Reis foi eleito se recusando a assinar a carta compromisso com os profissionais da educação. De todos os candidatos, foi o único. A única estratégia oficial divulgada até o momento, é implementação do 14º salário como principal política de remuneração, desconsiderando as condições de trabalho para o ensino e aprendizagem", diz a educadora.
Família Reis tem histórico de menosprezo pela educação.
Não é de hoje que a dinastia da família Reis representa um entrave para o desenvolvimento do ensino básico público em Duque de Caxias. Com a eleição do atual prefeito Netinho Reis, sobrinho do atual secretário estadual de transporte, Washington Reis, que também foi alcaide do município por dois mandatos, o clã irá somar 12 anos no poder executivo da cidade. Mas o que isso significa, na prática, enquanto gestão de políticas públicas para a educação local? Pouca coisa.
Reportagem do Fórum Grita Baixada de 5 de agosto de 2020 publicou uma denúncia que revelaria uma parte do descaso do segundo mandato do então prefeito Washington Reis para com a educação de Duque de Caxias. Como promessa de campanha, a construção e funcionamento de 50 creches. Os números então começaram a decrescer vertiginosamente. Ao tomar posse, Reis assinou o Plano Plurianual da prefeitura, relativo ao quadriênio de 2018-2021, que previa a construção de apenas 20 delas, cinco para cada ano de mandato, trinta a menos do que foi prometido em campanha e ao custo de R$ 52 milhões. O decréscimo foi seguindo ladeira abaixo, reduzindo-se para cinco unidades educacionais infantis e hoje o que resta, são apenas três em construção. Quantidade considerada bastante insuficiente para uma cidade com mais 800 mil habitantes. Pra piorar a situação, a prefeitura não gastou um centavo do próprio orçamento. Todo o recurso veio do Governo Federal 4 anos antes da reeleição de Reis, quando Dilma Roussef era a presidenta da República. Onde foi parar todo esse dinheiro? Ninguém sabe.
A situação bizarra de duas creches municipais em Jardim Gramacho
Imagine você levar seu(ua) filho(a) para ser matriculado em uma creche pública e, imediatamente, ser informado(a) de que para ingressar nessa instituição de assistência social infantil, seria necessário que a criança perdesse peso para se adequar aos critérios de adesão da unidade. Pois é isso o que acontece há anos em algumas unidades da rede municipal de creches chamada de Centros de Atendimento à Infância Caxiense (CAICs). Adrielly Rodrigues Miranda, moradora de Jardim Gramacho, bairro com 26 mil habitantes, faz parte do grupo de mães do território que há tempos denunciam esse drama com contornos de perversidade.
- "Isso acontece em várias outras creches de outros bairros que tem CAICs também. O meu filho já tinha baixo peso desde o nascimento e não precisou passar por isso, mas tem casos de mães que tiveram que forçar seus filhos a passarem fome para serem aceitos nessas creches. As crianças precisam estar desnutridas de propósito" - explica Adrielly. Ironicamente, ela relata que existem nutricionistas na creche que "corrigem" a desnutrição com uma alimentação mais balanceada, assim que as crianças são aceitas nas unidades.
Quem endossa essas denúncias é Fátima Silva, coordenadora e idealizadora da ONG Central Humana de Educação, Ideias e Formação Alternativa (CHEIFA) que atua na região e potencializou a voz dessas mães.
- "Estou aqui há 20 anos. Eu nunca soube de nada parecido em toda a minha vida. Já foram feitas notificações para a Pastoral da Criança, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Ministério Público e nada foi feito até agora. Estamos falando de uma violação grave de direitos humanos. A denúncia foi apresentada em audiências públicas e até em reuniões do Conselho Estadual pelos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA) da qual sou integrante, além da Defensoria Pública de Caxias". - indigna-se Fátima.
Segundo Fátima, ainda de acordo com as denúncias, crianças entre 1 e 4 anos precisariam estar pesando menos de 8kg para serem aceitas nas creches. Ou seja, apresentando um Índice de Massa Corporal (IMC) menor do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Abaixo dessa pesagem, a criança já estaria entrando em estado de desnutrição.
Outra mãe de Jardim Gramacho, Gleiciane da Silva, expõe mais uma situação caótica da rede pública de ensino infantil em Duque de Caxias. Um critério de seleção que mais dificulta do que facilita a democratização a essas crianças às unidades: sorteios. Ela diz que mesmo preenchendo a inscrição na creche Ubaldina Alves da Silva, também localizada em Jardim Gramacho, não é garantia de que todas as crianças serão contempladas. Quando a prefeitura não divulga a lista com as crianças no site da Secretaria Municipal de Educação, ela é disponbilizada, de forma improvisada, escrita em papel e pendurada do lado de fora do estabelecimento. Com quatro filhos, ela tentou matricular dois, um de 7 anos e outra de 4. Sem sucesso.
- "Eu tentei por mais de sete anos e nada. O último sorteio não chegou a ter 50 crianças escolhidas. E isso gera muita ansiedade na gente, porque precisamos trabalhar e tem várias mães solteiras que não conseguem trabalho, porque não tem com quem deixar". - lamenta Gleiciane. Ela acrescenta que a diretoria da Ubaldina fará um outro sorteio entre os dias 3 e 4 de fevereiro.
Até a conclusão dessa reportagem, Fórum Grita Baixada tentou entrar em contato com o promotor de Justiça, Guilherme Macabu, que, segundo informações de uma fonte, estaria à frente de investigações sobre as irrregularidades das duas creches em Jardim Gramacho. Como resposta, a Promotoria de Justiça da Tutela Coletiva da Educação de Duque de Caxias informou "que não há investigação em curso acerca de tais fatos". Tentamos contactar a direção das duas creches, mas os contatos telefônicos que constam eu seus respectivos sites encontram-se desativados.
Em Nova Iguaçu, Rede de Educação congrega museus e bibliotecas comunitárias
Se na educação básica, o poder público está longe de ser um facilitador para as vicissitudes de professores e alunos na Baixada Fluminense, iniciativas coletivas vêm se mobilizando, ao longo do tempo, para criar novas possibilidades de acesso ao ensino superior de qualidade. As Redes Populares de Educação desempenham um papel fundamental na promoção da equidade educacional, especialmente para estudantes provenientes de comunidades periféricas, onde as desigualdades sociais e a precariedade de recursos educacionais ainda são desafios persistentes. Essas iniciativas, geralmente impulsionadas por organizações e educadores engajados, ampliam o acesso ao conhecimento e criam oportunidades de aprendizagem que vão além do ambiente escolar formal.
Um desses educadores é o jovem morador de Nova Iguaçu, cientista social e produtor cultural, William Cruz, de 29 anos, um dos coordenadores e idealizadores da Rede de Educação Popular da Baixada. Ela surge no início da pandemia do coronavírus, através de um diagnóstico realizado por pré-vestibulares comunitários de Nova Iguaçu a respeito dos efeitos das políticas educacionais adotadas durante o período e como elas aprofundaram a defasagem educacional dos estudantes das escolas públicas.
Uma de suas críticas é direcionada aos chamados itinerários educativos que surgiram graças a uma alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 2017. Com a promessa de diversificar os conhecimentos dos estudantes, basicamente, seriam um conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, entre outras situações de trabalho, que os estudantes poderiam escolher no ensino médio para a sua formação técnica e profissional. William afirma que existia um certo entusiasmo em função da possibilidade de se concretizar essa programação por contemplar uma educação integral de qualidade defendida pela Rede. Entretanto, não foi bem assim:
- "Percebemos que a implementação dos itinerários educativos poderia fomentar um modelo do mercado criando postos de trabalho precarizados pra quem é da periferia. Então, isso acaba influenciando um modelo educacional também precarizado, criando gerações de pessoas preparadas para ser entregadoras de alimento por aplicativo. Nessa perspectiva mercadológica, alinhada ao rebaixamento dos postos de trabalho via plataformização, não faz sentido você oferecer ensino de qualidade, altamente técnico, propedêutico, integral, holístico", diz William.
Hoje a Rede de Educação da Baixada congrega vários núcleos de atuação. A mais recente parceria inclui o Projeto Germinar, coletivo de Engenheiro Pedreira, bairro do município de Japeri, que além de levar a educação popular para a região, organiza atividades culturais de tempos em tempos naquele território. Outro representante é o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) de Vila Operária, em Nova Iguaçu, que possui 29 anos de atuação. Dentro da diversidade de iniciativas presentes na Rede estão museus sociais como Museu de Arte e Cultura Urbana da Baixada Fluminense, no bairro de Cerâmica, em Nova Iguaçu, e três bibliotecas comunitárias, dentre elas a Biblioteca Comunitária Transformando Vidas, em Queimados.
William concluiu a sua provocadora monografia, fruto de sua graduação no ano passado, intitulada "Considerações sobre a Educação Popular no Brasil do século 21 a partir da Rede de Educação Popular", e que tem como tema uma atualização sobre a educação popular pela perspectiva da Baixada Fluminense. De início, ele observa fatores sociais que atravessam o educador popular. Dentre eles como o extensionismo que, na Educação, seria o conjunto de ações que visam a transformação social por meio da interação com a comunidade, pode afetar as dinâmicas dos movimentos sociais, replicando a sua face burguesa pra dentro dos mesmos. Como exemplo, ele afirma que as dinâmicas de certos movimentos sociais, a partir da aproximação com o plano extensionista da universidade, podem sofrer certos desequilíbrios em função de questões como a remuneração.
-"Você acaba tendo alguns militantes que, por estarem na universidade ou participarem de algum grupo de extensão, recebem recursos para militar, enquanto existe uma maioria militando sem renda. E isso gera uma série de constrangimentos e tensões", explica William.
Outro fator que William problematiza na monografia é a "fetichização" de políticas públicas por certos movimentos sociais, principalmente a partir do período da redemocratização do país. Segundo sua pesquisa, tais movimentos estariam depositando uma aposta dobrada, e talvez exagerada, na capacidade do Estado de enfrentar as desigualdades sociais. De acordo com seus apontamentos, haveria um rebaixamento nos horizontes de transformação e contestação para meras lutas políticas no amplo da institucionalidade.
- "Como se somente as instituições dessem conta de resolver problemas tão complexos, diz William".
Em Belford Roxo, Paulo Freire vive.
A educação popular representa uma das formas mais democráticas de ampliar o acesso ao ensino superior de qualidade para alunos de comunidades periféricas. Ao promover a autonomia intelectual, a educação popular transforma o processo de aprendizado em uma ferramenta de empoderamento e de transformação social. Essa percepção une a Rede de Educação Popular da Baixada e o Preparatório Comunitário Paulo Freire, em Lote XV, bairro de Belford Roxo, e que leva o nome do educador pernambucano reconhecido mundialmente por popularizar o conceito.
George Ferreira Lau é mestre em Educação, professor de História e Filosofia, co-fundador e coordenador do Preparatório. Testemunha do que aconteceu no bairro do Lote XV e adjacências ao longo de anos, ele afirma que o cotidiano socioeconômico do território reflete a realidade acerca de como a Educação é pensada enquanto política pública num sentido mais amplo no país. Região com quase 90 mil habitantes, Lote XV dividiu o crescimento no comércio com os problemas de sempre: saneamento básico ruim ou incompleto, falta de opções de lazer, cultura e transporte.
- "Aqui são poucas as escolas de educação básica municipais e estaduais para o quantitativo da população. Parece que querem que a população preta não estude, não questione, não perturbe, não sonhe e não seja ninguém. E tenha índices baixos de aprendizagem, de construção de conhecimento e de possibilidades de emprego", desabafa o educador.
O Preparatório Comunitário Paulo Freire, nasce para tentar reverter essa situação. Em 2009, junto com outros três professores da região, Lau funda o Preparatório. O desânimo do início, com poucos alunos, deu lugar ao entusiasmo, quando surge o primeiro grupo de adolescentes do 9° ano do fundamental. Em 2012, o preparatório conta com mais de 60 alunos. Hoje são mais de 200 jovens entre turmas presenciais e online. Além de outros projetos de apoio aos estudantes de escola pública, também presenciais e online, e grupos de estudos.
- "As disciplinas lecionadas são as matérias que vão cair nas provas, mas procuramos dar uma guinada popular nessa tarefa pedagógica. E humana também, pois a saúde mental do povo preto está muito abalada. O trágico existe e vem à tona na hora da construção de um futuro possível. Além disso, temos debates, roda de conversa, momentos culturais, entre outras atividades", diz o coordenador.
Hoje o Preparatório, além de todas as suas contribuições educacionais para a comunidade de Lote XV, conseguiu lograr mais um êxito: possui uma turma composta por alunos indígenas de todo o Brasil. A articulação e a mobilização para a captação de novos alunos é feita pelas redes sociais e, como todas as outras, são turmas objetivando bons resultados no ENEM. As aulas são por vídeo-conferência e já reúnem 82 pessoas, incluindo os professores. Mas as dificuldades de conexão com a internet ainda são um grande desafio, impossibilitando que todos os alunos acompanhem as aulas com regularidade.
Mesmo com tantas dificuldades e considerando aspectos mais delicados como a falta de segurança e a criminalidade no município, alunas do Preparatório como a belforroxense Maria Clara Dias da Silva persistem na trajetória.
- "O pré vestibular me ajudou a entender que eu posso, sim, entrar em uma faculdade federal e que eu tenho direito de está lá, e com a educação que me foi proporcionada lá dentro, graças a professores incríveis e toda ajuda e apoio que recebo, tenho certeza que conseguirei passar no vestibular e fazer minha graduação, e através disso conseguirei ter melhores oportunidades no mercado de trabalho, e proporcionar uma vida melhor para minha família", diz a aluna.
A educação na Baixada Fluminense é um reflexo das lutas e resistências que marcam a história da região. Apesar dos desafios impostos pelo descaso do poder público, como a falta de infraestrutura, precarização das condições de trabalho e a escassez de recursos, alunos e educadores da rede pública mostram uma força admirável ao se mobilizarem por um ensino de qualidade. Professores dedicados, muitas vezes trabalhando além de suas condições, e estudantes determinados em mudar suas realidades exemplificam como a educação pode ser um ato de transformação social. É urgente que políticas públicas sejam implementadas para garantir igualdade de oportunidades e fortalecer essa rede de aprendizado.