14 de setembro de 2018
O Estado Brasileiro é julgado por seus crimes
Fórum Grita Baixada e movimentos sociais organizam o Tribunal Popular da Baixada Fluminense, na Praça do Pacificador.
Imagine que por um dia apenas, o Estado Brasileiro pudesse ser personificado e, assim como qualquer mortal, responder em juízo por quase todos os crimes categorizados pelo Poder Judiciário ao longo dos séculos. A Praça do Pacificador, em Duque de Caxias foi palco, na última terça-feira, 11 de setembro, de um evento inovador que tentou abarcar tal realidade. Um tribunal popular foi montado para a condenação simbólica de uma entidade que afeta a vida de todos nós. Movimentos sociais como o Fórum Grita Baixada, Movimento Negro Unificado, Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, Casa Fluminense, dentre outros, simularam um julgamento em que o Estado Brasileiro, na condição de réu, seria responsabilizado pelos seus crimes, especialmente os de genocídio contra a população negra, pobre e favelada. Não faltou nada. Plateia, júri, juíza, testemunhas, advogado de defesa e de acusação e a leitura da sentença do condenado.
O advogado criminalista Bruno Sankofá foi o responsável por fazer o papel da acusação. Segundo ele, existem provas mais do que suficientes para que o Estado seja responsabilizado nas esferas jurídica civil, criminal e administrativa. O contexto histórico de exclusão que resultou na marginalização da população negra seria o elemento mais agravante que condenaria o réu. Ele disse quais são os objetivos que espera alcançar com o tribunal.
“Nós queremos dar voz às vítimas que foram lesionadas pelo Estado. A morte de jovens e mulheres negras, as prisões injustas e nos baseamos em estudos, pesquisas, estatísticas, relato das próprias vítimas. Nós vivemos em uma sociedade em que há a crença institucional de que a palavra da vítima não tem valor. Com isso, vamos relativizar a ideia de que o sistema oferece proteção para todos, quando sabemos que há um círculo de desproteção em curso. Essa proteção é pretendida baseada apenas numa seleção e em categorias específicas”, diz Sankofá.
Como surgiu o Tribunal?
A construção de um tribunal dessa natureza possui um caráter plural. Pode ser definida como iniciativa, metodologia, instrumento de incidência política, não importa. É uma ação coletiva, acima de tudo, e que surge no Brasil no contexto dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 2008, quando movimentos sociais, movimentos populares e organizações de direitos humanos do Brasil intensificaram as discussões das constantes violações dos Direitos Humanos realizadas pelo Estado Racista Brasileiro. Essa iniciativa tem como objetivos centrais: ser um espaço de denúncia do Estado brasileiro e fomentar a perspectiva de um sistema de justiça menos racista. Desde fevereiro de 2018, o coletivo de organizações se reuniu e analisou denúncias coletando provas através de filmes, teatro, música e depoimentos de testemunhas que sentiram na pele as violações cometidas pelo Estado.
Uma delas é Mônica Cunha, coordenadora do Movimento Moleque, entidade criada em 2003 por parentes de jovens em conflito com a lei no sistema socioeducativo. Ela afirmou que a sociedade cria um entendimento mais punitivo sobre o que é crime quando os autores dos delitos são jovens negros e pobres da periferia. Tal sentimento por justiça não possui o mesmo rigor quando se trata de outros crimes.
“Esses adolescentes têm família, sentimentos, são seres humanos e são os que mais morrem. Jamais deveria haver uma permissão de matar, mas ela existe. Ser infrator, não significa ser bandido. Qual a definição de bandido que existe então? O de um menino que rouba um celular ou de homem engravatado que rouba uma cidade inteira ou um país deixando a população sem saúde, sem educação”,
Quem também participou do Tribunal foi a professora Sônia Martins, articuladora do Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu. Sentindo-se privilegiada em participar junto de atores sociais engajados nessa construção coletiva, resultante de um fato social, ela destaca o caráter inovador de se ter a chance de condenar o Estado pelos crimes de genocídio, ainda que simbolicamente.
“Pra mim é um fato inédito. Eu nunca ouvi, em minha história, que o Estado tenha ido a julgamento. Na verdade, não existe um julgamento por essa população que é executada antes de ser julgada. O Estado ainda está sendo privilegiado. Acho que essa iniciativa pode impactar não somente na realidade de Caxias, como da própria Baixada Fluminense.”, analisa Sônia.
Ao final, quando o júri decidiu pela condenação do Estado, a juíza Lia Manso, advogada da ONG Criola proferiu a leitura da sentença. Dentre outras determinações, o Estado deveria implementar políticas públicas de reparação aos grupos atingidos por essa violência e que promovam o protagonismo das mulheres e da juventude negra.
Veja a íntegra da sentença de condenação do Estado
Que o júri reconheça a responsabilidade do Estado pelas violações de direitos humanos relacionadas ao sistema prisional, pelos autos de resistência, desaparecimentos forçados e chacinas apontadas ao longo deste julgamento; E que conceda as seguintes medidas de reparação a seguir:
No tema da reabilitação psíquica, médica e social das vítimas e suas famílias e da sua reparação econômica:
No tema do Direito à memória, das reparações simbólicas e coletivas
Dos crimes praticados pela polícia:
Dos crimes praticados pela milícia e grupos de extermínio
Por fim, o povo requer também como reparação dessas violências que sejam adotadas políticas públicas e reformas legislativas e das instituições com o objetivo de prevenção das mesmas. Especificamente:
Voltadas ao Sistema Prisional e Degase:
Relacionadas aos autos de resistências, chacinas e desaparecimentos forçados praticados pela polícia:
Voltadas aos grupos atingidos por essas violências:
Realizaram o Tribunal Popular: Fórum Grita Baixada, Movimento Negro Unificado – MNU, Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, Rede de Comunidades e Movimento contra à Violência, Campanha Caveirão Não! Não à Intervenção!, Iser, Casa Fluminense, Unegro, Criola, Movimento Moleque, Visão Mundial, Comissão dos Direitos Humanos da Alerj, Defensoria Pública de Duque de Caxias, Ouvidoria Externa da Defensoria Pública, Voz da Baixada, Observatório de Favelas, Fórum Comunitário de Jardim Gramacho, Frente Estadual pelo Desencarceramento,MJPOP, Frente Estadual de Juristas Negros e Negras, Associação Apadrinhe um Sorriso, Rede de Advogados Ativistas da Bxd. Fluminense, e AMARJ.