12 de junho de 2019
Justiça Para Todos?
FGB participa de Audiência Pública na Defensoria de Duque de Caxias sobre as dificuldades do poder judiciário em adentrar comunidades periféricas da Baixada
Num país onde há desequilíbrios de toda espécie, não é de causar surpresa que até a disseminação de informações importantes sobre como exercer de forma plena a cidadania também tenha os seus “buracos” no caminho. O cenário apresenta sensível piora em territórios periféricos, vulnerabilizados pela pobreza e o racismo, onde estar perto da Justiça é apenas força de expressão. Não à toa, vários movimentos existem para corrigir essa e outras distorções correlatas, auxiliando famílias. Alguns deles estiveram presentes na Audiência Pública “Acesso ao Sistema de Justiça: Desafios do acesso em territórios da Baixada Fluminense”, realizada no último dia 1 de junho, na sede da Defensoria Pública de Duque de Caxias, apresentando propostas sobre como tentar reverter esse quadro.
Professor de Direito Penal, o defensor público Antônio Carlos de Oliveira diz que é preciso mudar a mentalidade reinante de que justiça e sociedade andam em lados opostos. Embora admita que o ordenamento jurídico, fechado, por vezes indecifrável para a grande maioria das pessoas, só se constituiu dessa forma, mediante a aprovação da própria sociedade. Ele cita como exemplo, a insuficiência de materialidade de provas que poderiam sustentar investigações mais sólidas sobre os casos de intolerância ocorridos recentemente em terreiros e outros locais sagrados para as religiões de matriz africana na Baixada Fluminense. “Os atores do poder público, na condução dessas investigações, se comportam como meros espectadores dos acontecimentos. Alguns delegados dizem que não podem iniciar as investigações criminais porque não há registros de boletins de ocorrência. É claro que isso acontece, pois quem sofre essa violência tem medo de denunciar. Então é preciso que se crie mecanismos para se encontrar outros subsídios, dentro da legalidade, para a produção de provas e os devidos procedimentos processuais”, diz Oliveira.
Essa interpretação do medo como forma de silenciamento é também compartilhada pelo coordenador do projeto Direito à Memória e Justiça Racial do Fórum Grita Baixada, Fransérgio Goulart. Ele ressalta que tal sentimento é um dos grandes desafios para a população negra e periférica na Baixada Fluminense acessar a Justiça, principalmente quando os debates englobam temas relacionados à segurança pública. Ele afirma que, para além da sensação de risco que essas populações sofrem, é preciso criar uma rede de confiança e acolhimento. “Como podemos superar isso? Criando políticas de vínculo e confiança, gerando uma rede de proteção e cuidado. Movimentos sociais, como o próprio Fórum Grita Baixada e a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência do Estado, já vêm fazendo isso”, afirma o historiador.
Goulart também tece críticas sobre como o poder Judiciário se acomoda naquilo que deveria ser o seu trabalho ao investigar violações em comunidades pobres: produzir provas.
“É preocupante o discurso que o sistema de justiça tem em relação a produção de provas qualificadas, principalmente no tocante a violações de direitos da população preta e periférica. Existe uma condição, amplamente aceita, de que a vítima das arbitrariedades precisa ter responsabilidade, que não é dela, em qualificar as provas sobre a própria violência sofrida. Os agentes de justiça perguntam se as vítimas tiraram fotografias, se elas podem trazer alguma identificação nas fardas de PM´s, por exemplo”, explica Goulart.
A representante do Fórum Municipal dos Direitos das Mulheres, a educadora Ivanete Silva, afirmou que uma das grandes dificuldades enfrentadas pela população feminina de Duque de Caxias, no que diz respeito ao acesso à justiça, se refere a insuficiência de políticas públicas para mulheres.
“Há poucos espaços de serviços de atendimento jurídico especializados para casos de violência contra mulher, por exemplo. E isso é muito grave”, disse Ivanete, em seu momento de fala.
Em seguida, ela citou dados do Dossiê Mulher 2018, relatório produzido pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), acerca de levantamento específico na Baixada Fluminense sobre violações de gênero. A professora da rede pública de ensino salientou que ser mulher na região é uma questão de sobrevivência.
“A Baixada obtém o segundo lugar no número de homicídios dolosos, ocupa o terceiro lugar em número de tentativas de estupro, sem contar os índices de importunação em transporte público. Além disso, 54% da população de Duque de Caxias é formada por mulheres”, concluiu Ivanete.
Representantes de religiões de matriz africana também participaram da Audiência e expuseram vários casos em que locais de culto foram destruídos e seus praticantes, agredidos fisicamente e até ameaçados de morte. Um deles afirmou que um motorista de ônibus recusou seu embarque no coletivo apenas por trajar as vestimentas sacerdotais de uma cerimônia de candomblé.
Ao final da audiência, a defensora pública Renata Tavares solicitou que fosse organizado um curso de capacitação para defensores de Direitos Humanos com a temática de intolerância religiosa. Ela fez questão que a construção da oficina tivesse a participação direta dos candomblecistas e umbandistas ali reunidos.