23 de maio de 2019

ARTIGO 

100 dias de Governo Witzel: 100 dias de “desgovernos” para o mundo do trabalho

Por Percival Tavares da Silva – Pastoral Operária da Diocese de Nova Iguaçu

 

Apresentação

 

Passados os primeiros 100 dias do governo Witzel no Rio de Janeiro, o que dizer da atual conjuntura em relação ao mundo do trabalho?  O que coube e o que reserva o atual governante para a classe trabalhadora fluminense? Eis uma difícil, ingrata e insana tarefa da Pastoral Operária da Diocese de Nova Iguaçu-RJ junto ao Fórum Grita Baixada.

 

Devido às dificuldades para identificar algum benefício do “governo” Witzel em relação à classe trabalhadora e, por extensão, às classes populares, decidimos focar nossa análise também nos 100 dias do governo federal. Mesmo porque suas políticas para o trabalho se imbricam.

 

Retrocessos e acirramento da crise 

 

Iniciamos esta análise com uma breve retomada do contexto em que os atuais mandatários chegam ao poder, nos perguntando: que benefícios destacar, para os que vivem da venda da força de trabalho nesses 100 dias de “governos”? Retrocessos e acirramento da crise que atinge sobretudo as classes mais desfavorecidas. Pois são elas que estão pagando a conta do “descontrole dos gastos públicos”. Se com o Partido dos Trabalhadores no poder central já estava difícil conter os avanços das “contrarreformas” neoliberais no Brasil, com o golpe de 2016 que levou Temer à presidência as porteiras se abriram. Temer, sob o argumento de modernizar as relações trabalhistas e assim tirar o País da “crise” e gerar empregos, usou de escusos artifícios políticos para conseguir aprovar emendas constitucionais que penalizam sobretudo os trabalhadores e os mais pobres. Entre outras aprovou a emenda da terceirização dos serviços, a “reforma” trabalhista, a emenda constitucional 241 que limitou os gastos públicos por 20 anos, gastos sobretudo com a educação, a saúde, a assistência social, etc. Emenda também chamada de PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da morte.

 

E a extrema-direita chega ao poder no Brasil em 2018 em meio a uma gravíssima crise econômica mundial que até então o Brasil conseguira driblar. Chega ao poder manipulando sorrateiramente as mentes, assim como já acontecera nos Estados Unidos com a eleição de Trump e na votação polarizada sobre a permanência ou não do Reino Unido na Comunidade Econômica Europeia. Chega ao poder servindo-se das modernas tecnologias para levantar e cruzar dados do perfil psicológico dos brasileiros pelas redes sociais através de algoritmos matemáticos (veja, por exemplo, o documentário francês “driblando a democracia” link https://vimeo.com/295576715).

 

Para tanto, com apoio do secular ranço conservador da elite brasileira e da mídia, golpeou a democracia com o impeachment de Dilma Rousseff da presidência do Brasil e encarcerou sem provas o ex-presidente Lula para que não concorresse às eleições de 2018; alimentou a demonização dos que lutam por direitos, acusados de defenderem bandidos; usou de notícias falsas (fakes news) nas redes sociais para atacar, penalizar e deslegitimar o Partido dos Trabalhadores e a esquerda em geral. Seu mote, como costuma acontecer no fascismo, o combate a corrupção. Encobriu assim que todo organismo vivo, por mais salutar que seja, tende à corrupção[1], a deteriorar, a apodrecer, e que a corrupção pública no Brasil vem desde 1500. Com isso, potencializou as condições para continuar o desmonte dos direitos, das conquistas sociais, da proteção social dos trabalhadores e empobrecidos, ao submeter “a política aos interesses do mercado”[2] em detrimento do bem comum. E pasme-se, com os “condenados da terra” apoiando seus algozes.

 

Assim, o capital traz de volta o trabalho escravo do século XIX. Travestido de terceirização, escravidão digital, trabalho intermitente, precário, pois despossuído de direitos, (a praga do trabalho intermitente, aprovado no Brasil por Temer, que avança no mundo em crise capitalista, se caracteriza pelo vínculo trabalhista em carteira, mas sem garantias de horas, dias fixos de jornada de trabalho e direitos trabalhistas). A contrapartida desta reestruturação produtiva que começou na Alemanha são os crescentes trabalho informal e desemprego estrutural, sobretudo, entre os menos escolarizados.

 

É nesse tenebroso quadro de barbárie para a classe trabalhadora, de um País em crise – pensamos em crise forjada para forçar as contrarreformas – que impostores assumem os governos do Estado do Rio de Janeiro e do Brasil. Assumem sem apresentar planos de governos que apontem para efetivas melhorias das condições de vida, trabalho e desenvolvimento da nação. Assumem arrotando moralismos e militarização da política e da escola. A caça a corruptos e assassinatos de “suspeitos” nas periferias e favelas, verdadeiras cortinas de fumaça para confundir incautos e desavisados, servindo para escamotear os reais interesses de governos pautados no desmonte dos direitos, no “enxugamento” da máquina do Estado e na total submissão do País ao capital financeiro.

 

Assim, seus primeiros 100 dias de gestão se concretizam em explícitos projetos de governos para os bancos, as elites nacionais e internacionais. Ao mesmo tempo em que a população desamparada, desempregada, subempregada, passando fome, agonizando nas filas dos hospitais, tenta sobreviver sob tiros trocados entre bandidos e policiais em nome de uma “pseudo-ordem”. E, o genocídio anunciado em suas campanhas disseminadoras de ódio e rancor ao pobre, ao negro, ao pequeno, à mulher, aos LGBTs, etc., se concretiza.

 

O “governo Witzel” tem se caraterizado por poucas propostas e pela barbárie instituída no cotidiano da população fluminense. A área social do Rio está estagnada. Witzel não tem e não terá políticas públicas para as demandas sociais nas áreas de saúde, educação, trabalho e infraestrutura. Seu ilegal e criminoso discurso é apontado como “responsável pelo aumento da letalidade da polícia no estado”: 305 pessoas foram assassinadas nos seus 2 primeiros meses de gestão.

 

O descarado, deprimente, vergonhoso vídeo em que este governador aparece num helicóptero com atirador alvejando uma tenda evangélica em Angra dos Reis, supostamente de traficantes, expressa o nível a que chegou a violência do Estado para com a população, sobretudo a negra e mais pobre. Assim a “Lei do abate”, promessa das campanhas eleitorais dos atuais governos estadual e federal, tornada política de Governos, evidencia o fim do Estado de Direito para o pequeno e indefeso.

 

O que esperar do plano de governo federal em execução, denominado O Caminho da Prosperidade, aliás um plano por sinal bem articulado e convincente para os desinformados e desavisados? Trata-se de um plano de desestruturação do Estado brasileiro e de sucateamento das riquezas do País, subserviente e entreguista, lesivo e violento com os mais pobres, os subalternizados. O fim do Estado Direito. Inconstitucional.

 

A explícita prioridade econômica do atual presidente da República de "gerar crescimento, oportunidades e emprego, retirando enormes contingentes da população da situação precária na qual se encontram", não se concretiza nem tem perspectiva de se concretizar. Os prometidos "ajustes necessários para garantir crescimento com inflação baixa e geração de empregos", vêm se revelando como subserviente e irresponsável controle fiscal, a aumentar o desemprego, subemprego e informalidade. Passados 100 dias, o País parou, o desemprego subiu para além dos 13 milhões de desempregados. Se as propaladas contrarreformas trabalhistas do governo Temer, divulgadas como a pedra de toque para colocar o Brasil no rumo, não se reverteram em emprego, renda e equilíbrio fiscal, o que esperar da contrarreforma da Previdência?

 

Para entender esse momento de crise do capital, e de subserviência brasileira à lógica do mercado, recorremos ao sociólogo Ricardo Antunes[3]. Para este professor da UNICAMP que pesquisa as relações de trabalho, “estamos em um processo de devastação das legislações sociais do trabalho, que se acentua com o golpe que tirou Dilma Roussef do poder e levou ao governo do Temer cujo atributo fundamental era no plano de acabar com as relações de trabalho. A primeira medida foi o decreto liberando a terceirização praticamente total, que significou para o brasileiro uma quebra importante num dos fundamentos da CLT”.

 

“A segunda  e mais grave ainda, porque é mais abrangente, continua Antunes, é a contrarreforma trabalhista de 2017 que autorizou o empregado negociar com o patrão e isso estar acima da lei. Ela estabeleceu a flexibilidade de várias dimensões do trabalho, como a jornada e o salário, por exemplo. Essa reforma do Temer tem um claro movimento anti-sindical, que depois se consolidou com o (atual presidente do Brasil). Essa proposta tinha um sentido de tirar a negociação predominantemente do âmbito sindical e trazer  para o âmbito individual entre trabalhadores e a empresa,” campo em que o trabalhador fica mais fragilizado na negociação.

 

“O terceiro ponto é a terceirização permitida no setor público. Esse conjunto de desmonte é uma verdadeira devastação. Há um processo que começa com Temer e chega agora” ao atual presidente “com a Reforma da Previdência, que vai ser a maior devastação dos direitos trabalhistas do nosso país”.

 

Antunes explica que “O mundo do trabalho hoje é pautado primeiro por uma legislação social muito predatória.  A empresa de nosso tempo, é uma empresa enxuta. O trabalho vivo deve ser substituído pelo trabalho morto, de maquinário digital. As plataformas digitais, que são cooperações, tem um monte de trabalhadores, uma série de atividades que pessoas que não tem emprego e ficam dependendo de uma plataforma para indicar trabalho. Nem a plataforma é obrigada a te chamar para trabalhar e o trabalhador é obrigado a aceitar.”

 

Conforme este sociólogo, estamos entrando no “mundo da intermitência e isso é uma verdadeira praga mundial. A classe trabalhadora hoje compreende um conjunto muito heterogêneo de homens e mulheres que vendem sua força de trabalho em sua grande maioria já mediada por um aparelho digital, e esta condição aliada a uma empresa flexível altamente digitalizada faz com que o trabalhador esteja disponível para o trabalho. Essa é a classe trabalhadora dominante do mundo da escravidão digital”.

 

De acordo com o professor da UNICAMP, “O trabalho precário nasce com o próprio assalariamento capitalista. No início da revolução industrial os trabalhadores trabalhavam até 18 horas por dia, sem interrupção, as crianças trabalhavam, então é um trabalho assalariado intensamente precarizado. A luta da classe trabalhadora foi para regular e obter direitos que temos hoje”.

 

Antunes destaca que “Esse movimento que marcou a revolução industrial gerou um trabalho precarizado que era diminuído ou ampliado em função das realidades capitalista de cada país. Essa precarização se acentua em 1973 quando há uma grande crise estrutural no sistema de capital (...). Esse processo é o que permitiu precarizar o trabalho. É o pior dos mundos para a classe trabalhadora”.

 

A partir dessa explicação de Ricardo Antunes podemos entender, mas não necessariamente concordar com as medidas que estão sendo tomadas pelo governo brasileiro. Mesmo porque quem está pagando a conta com a própria vida, sem entender o porquê, é a classe trabalhadora. Ao tempo em que aumenta a concentração de riqueza, isto é, a distância entre os mais ricos e os mais pobres.

  

O plano de privatização acentua a entrega de empresas públicas estratégicas, como a Petrobrás, e outras multinacionais. Os recursos arrecadados, conforme promessa de campanha, serão destinados à redução da dívida pública brasileira. Não se vê, ou não se quer ver, que a dívida pública é um poço sem fundo: atualmente cerca de 45% do orçamento nacional é destinado ao pagamento de compromissos com a dívida e os juros. A privatização das empresas brasileiras atende aos interesses de agiotas nacionais e internacionais, mas não ataca a raiz da questão, algo que os governos anteriores também não fizeram (ver site auditoria cidadã da dívida https://auditoriacidada.org.br). A privatização dá como certo o montante da dívida, sem buscar auditá-la e cobrar a redução da parte correspondente à agiotagem. Desse processo resultará um Brasil mais pobre, endividado, sem suas empresas estratégicas, refém de agiotas exigindo ajustes fiscais cada vez mais agudos.

 

Para a Previdência, o atual governo defende a adoção de um modelo "com contas individuais de capitalização", funcionando em paralelo com o atual, que será reformado ou melhor, será paulatinamente extinto; que o modelo proposto  assemelha-se ao aplicado no Chile do ditador Pinochet por economistas como Paulo Guedes, atual Ministro da Economia. O Chile é o país que hoje registra o maior índice do mundo de suicídios de idosos; país onde há casos de idosos recebendo o equivalente a R$10,00 mensais como rendimento da sua aposentadoria via capitalização. Podemos dizer que a reforma da previdência aprofunda a crise, acaba com a seguridade social, beneficia banqueiros, empresários, agiotas e penaliza o trabalhador. Ricardo Antunes observa que “A reforma da Previdência vai ser o fim da Previdência pública. Vamos ter, como resultado, uma massa de trabalhadores sem proteção. Que trabalha esporadicamente, com salários com níveis muito baixos. É um sistema que beneficia os bancos.”

 

A ideia de unificar e simplificar os tributos, segundo o governo é para reduzir os impostos. É a lógica do Estado enxuto, o Estado Mínimo neoliberal. Estado que deixaria de se preocupar com pequenas coisas como educação, saúde, assistência, social, previdência social, e com empresas estatais estratégicas, etc., em suma, a total destruição da proteção social e do Estado. "Esquece" o presidente de dizer que para reduzir os impostos, os recursos têm de sair de algum lugar, pois o Estado, por menor que seja, não sobrevive sem recursos. Mas como se comprometeu com seus apoiadores a não taxar as grandes fortunas, a conta sobra para os mais pobres através dos cortes na saúde, educação, assistência social, e a entrega das riquezas da Nação, etc.

 

Como podemos perceber, o neoliberalismo refinou suas armas de dominação. No caso do Brasil suas armas de dominação materializam-se, por exemplo, no decreto 9.759, de 11 de abril de 2019, do atual presidente, que extinguiu mais de 600 Conselhos Sociais e outros órgãos colegiados responsáveis por importantes políticas públicas; no obscurantismo da contrarreforma curricular de cunho economicista que exclui a obrigatoriedade das disciplinas humanas do ensino básico; na contrainformação disseminada, sobretudo, aos “simples” via aparelhos ideológicos do Estado. Esses, entre outros retrocessos, se fazem necessários e são funcionais para que as elites consigam implantar as “contrarreformas” do Estado. Ao mesmo tempo, essas medidas recebem aprovação de boa parte da população, mantida refém de um senso comum bizarro. Senso comum que, à elite no poder, não interessa que seja superado. Como disse o presidente da República na posse do atual ministro da Educação, Abraham Weintraub: “Nós queremos uma garotada que comece a não se interessar por política”.

 

Assim, para atender à gana, sobretudo do capital financeiro, desmonta-se o frágil Estado democrático de direito para aplicar a sua política econômica. A se manter o atual cenário, o resultado será de mais fome, miséria, violência e morte. Recente notícia dá conta que os rendimentos do mais pobres foi o mais baixo dos últimos 7 anos...

 

Conforme pesquisa recentemente divulgada pelo IBGE, o desemprego aumentou no primeiro trimestre e atinge mais de 13 milhões de pessoas no país, “fora os que vivem de trabalhos informais, os chamados bicos, e os desalentados, que desistiram de procurar emprego”. Em suma “Um quarto da força de trabalho brasileira está fora do mercado ou subutilizada”[4].

 

Quanto aos que ainda tem a “sorte” de estarem empregados, acossados pelo fantasma do desemprego, se veem submetidos a mais horas de trabalho, sem receber horas-extras, e à redução salarial. E a roleta da morte se faz presente na “russa” sobrevida do trabalhador desamparado, sem a proteção de leis historicamente conquistadas com muita luta e sangue.

 

Contraditoriamente, se as classes popular e trabalhadora não enxergaram algum benefício nos primeiros 100 dias de gestão federal e estadual, a classe patronal está comemorando: Segundo o presidente em exercício da Confederação Nacional da Indústria CNI, Paulo Afonso Ferreira, “quase 70% das propostas da indústria para os 100 primeiros dias de governo ‘encontram-se em evolução positiva’. Incluindo a ‘reforma’ da Previdência”, que é considerada fundamental pelo setor patronal para o equilíbrio das contas públicas e melhora da confiança no país. No entanto, outros estudos não divulgados à população mais simples, como os dos auditores fiscais da Previdência, a CPI da Reforma da Previdência do Congresso Nacional, provam por A + B que a Previdência não é deficitária e que a Reforma da Previdência vai aprofundar a crise.

 

Diante desse quadro, às classes populares só resta o jus sperniandi (o direito de espenear). Isto é, ir às ruas, o efetivo palco da luta por seus direitos. Não há outra saída. Nossa omissão nessa hora será a pedida do boi que segue para o matadouro.

 

 

 

[1] O substantivo feminino corrupção deriva do latim corruptio, onis (de corrumpere) e tem o sentido de depravação, deterioração, alteração (Dicionário Latino-Português de F. R.  dos Santos Saraiva). Pode significar: a) deterioração, decomposição física, orgânica de algo ou putrefação de algo, por ex., do cadáver; b) modificação, adulteração das características originais de algo, por ex., de um texto; c) no sentido figurado pode significar degradação dos valores morais, hábitos ou costumes; d) ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia; e) uso de meios ilícitos, por parte de pessoas do serviço público, para obtenção de informações sigilosas, a fim de conseguir benefícios para si ou para terceiros.

[2] Cf. Entrevista de Paulo Gontijo, membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ao site da CNBB. Disponível em: http://www.cnbb.org.br/mais-democracia-e-o-remedio-para-a-democracia-no-brasil/

[3] Ricardo Antunes, Cenário trabalhista é semelhante ao de 64, diz sociólogo, Carta Capital - Alexandre Putti – 02 de maio de 2019. Disponível em: https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/392123/Cen%C3%A1rio-trabalhista-%C3%A9-semelhante-ao-de-64-diz-soci%C3%B3logo.htm

 

[4] Cf. https://www.brasildefato.com.br/2019/05/02/numero-de-desempregados-que-deixaram-de-buscar-trabalho-chega-a-48-milhoes-diz-ibge/