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Da esquerda para a esquerda não pode: segundo Souza, os movimentos sociais precisam "se olhar no espalho" e rebuscar a pluralidade dos discursos. 

22 de novembro de 2018 

Entrevista Vladimir de Souza

“Precisamos de uma nova esquerda”

O pedagogo e pastor batista, responsável pela educação de 45 jovens em Jardim Gramacho, através da instituição Casa Semente, diz que um grande pacto pela redemocratização do país só será possível se a esquerda voltar “a olhar os pobres”.   

 

Entrevista a Fabio Leon 

 

O Brasil ganhou um novo presidente da República que não esconde sua inclinação pela extrema-direita. Jair Bolsonaro, como chefe do Executivo brasileiro, pretende atacar, dentre tantas determinações polêmicas, uma das ações que mais o incomoda: o ativismo social. A se cumprir o que promete, tal iniciativa irá afetar diretamente o trabalho de milhares de pessoas no país, como o do pastor batista e pedagogo Vladimir de Souza, um dos representantes da Casa Semente, instituição que cuida da educação de 94 crianças e adolescentes em situação de risco social dos 5 aos 18 anos de idade no bairro Jardim Gramacho, periferia de Duque de Caxias. São jovens que precisam superar “a necessidade precoce de autonomia num cenário local com altíssimos índices de desemprego”, conforme está escrito em um dos relatórios produzidos pela organização e enviado por Souza, a pedido do Fórum Grita Baixada.

 

Nos últimos 2 anos, ele é responsável direto por 45 adolescentes em sua formação escolar. “Há um déficit altíssimo em Jardim Gramacho. São jovens que não estão migrando para o ensino médio. Nossa função é ajuda-los na complementação educacional. É uma construção de saberes através da perspectiva de Paulo Freire. Não é um trabalho unicamente de alfabetização, mas uma forma em que se possa instrumentalizá-los de maneira crítica para além da realidade de seus territórios”, diz Souza.

 

Souza também realiza trabalhos de articulação social, um braço institucional para arregimentar parcerias e ações em conjunto com as demais organizações existentes na região. Dedica-se integralmente à formação política e cidadã dos moradores de Jardim Gramacho e em suas adjacências, concretizando três encontros coletivos unicamente com esse fim, somente no primeiro semestre de 2018. Um deles resultou em um curso de direitos humanos e políticas públicas, no início de setembro, que totalizou dois meses de imersão, reunindo amigos, vizinhos e parceiros institucionais. Nas duas primeiras ocasiões, os encontros foram em templos evangélicos, considerados por ele as instituições transcendentais com maior penetração em áreas periféricas. E mais: afirma que poucos movimentos sociais têm poder de diálogo e absorção de ideias em comunidades pobres, se comparadas às dinâmicas de relacionamento comunitário que igrejas neopentecostais protagonizam nesses mesmos territórios. Foi a partir desse pensamento que se inicia a conversa que você lerá a seguir:

 

Entrevista a Fabio Leon

 

Por que existe essa aparente dificuldade de setores progressistas ou movimentos sociais de se comunicar com as bases, a população das comunidades pobres, frente ao protagonismo das igrejas evangélicas?   

 

É, antes de tudo, uma questão epistemológica, ou seja, de como a produção de conhecimento chega a determinados lugares. Os teóricos da formação de movimentos sociais e de uma construção social através da intelectualidade brasileira são ateus. Quando você está diante de Freud, Marx e Nietzsche está diante de exemplos de construção da academia. Eles propuseram uma sociedade em que a religião poderia ser superada. O marxismo tem isso como referencial. O problema é quando você faz essa leitura, se esquece que estamos na América Latina, com cidades ainda em desenvolvimento e a religião se faz necessária. Esses autores são de países do primeiro mundo, que superaram questões de infraestrutura, de saneamento básico, de políticas públicas há décadas. O Brasil não teve Idade Média. Eles fomentam um inconsciente coletivo da academia, mas a academia não consegue entender o que o pobre precisa. Que a religião é fonte de proteção e acolhimento. Por isso é que a vitória do ( prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo) Crivella em cima do PSOL foi massacrante. O partido criou uma articulação de uma esquerda pra esquerda. A Igreja Católica fez um grande exercício de comunicação durante muitos anos através da Teologia da Libertação, com figuras como Frei Beto, Frei Tito, Leonardo Boff, pois ela transmitia amparo. Ela soube casar muito bem a fé com a militância. E isso é plenamente possível de se fazer no movimento evangélico porque eu não sou o único, o último biscoito do pacote, pois existem outros pastores sendo a resistência nesse momento. Entretanto, é bem verdade, sabemos que os pastores carecem de uma formação política, cidadã. O curso de teologia não contempla matérias alusivas à formação do povo brasileiro...

 

...Ou seja é aquele problema de comunicação que o Mano Brown, dos Racionais MC´s falou no último discurso do Haddad na Lapa, antes das eleições.

 

Isso. Mas deixa eu te falar uma coisa: a psicanálise da favela é a Igreja, meu querido. A classe média vai fazer análise no divã da Zona Sul. O pobre faz com o pastor. E isso tem uma capilaridade que você não imagina e os movimentos sociais vão ter de descobrir. Com a vitória da agenda fascista, a esquerda vai ter um bom dever de casa pra fazer com a gente.

 

Você é pastor há quanto tempo?

Eu sou formado em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Brasil, na Tijuca, na década de 1990. Estudei Teologia Latino Americana que tem duas vertentes: a teologia da libertação, através dos católicos, e a teologia da missão integral, que são outros teólogos de referencial institucional protestante e evangélico como Samuel Escobar, René Padilha. Aqui no Brasil tivemos Robson Cavalcante, dentre outros. Com 26 anos fui ordenado pastor, com 30 comecei a presidir igreja. Com 14 anos fiquei vinculado a uma igreja histórica, mas sempre flertando com as demandas de justiça social e direitos humanos, com a intenção de assumir esses compromissos de forma mais intensa. Em 2014 eu fiquei um pouco distante da igreja, pois fui buscar minha formação em Pedagogia, com especialização em gestão escolar.

 

É interessante você dizer que é pedagogo, pois estamos vivendo um momento político-partidário que renega a pedagogia de Paulo Freire. Qual a sua análise sobre isso?

 

Parece que essas pessoas não leram o que Paulo Freire escreveu. Tem um pseudo intelectual chamado Olavo de Carvalho que escreveu um livro chamado “Tudo O Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota”. Nele há uma crítica a “Pedagogia do Oprimido”, do Freire, mas acho que não chega a cinco laudas. Há uma ignorância em relação a obra do Paulo Freire. Há, também, uma perspectiva de educação neoliberal onde você prepara o sujeito para o mercado de trabalho, sem dar a ele instrumentos críticos para entender o seu papel, a sua consciência de classe. O que falam sobre a tal doutrinação marxista, na prática não estava acontecendo. Temos um desconhecimento da figura histórica de Paulo Freire, que é o autor mais apreciado fora do Brasil e detentor de todo um pensamento educacional que se espalhou por toda a América Latina. O brasileiro desconhece essa obra e há muito preconceito sobre ele.

 

Mas de onde vem esse preconceito?

 

Porque ele trabalha com um instrumental marxista. E os religiosos veem os marxistas como pessoas perigosas. Paulo Freire afirma que não há uma neutralidade na área do saber, assim como não há na teologia. Ele faz parte de uma geração que encontrou várias ferramentas e instrumentos de uso educacional nas ciências sociais e uma forma de se pensar métodos. Ele buscou na sociologia, na antropologia, na história e, a partir dos territórios, iniciou novos processos de saber. Tanto Paulo Freire, como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, como tantos, não queriam apenas ensinar as crianças a ler e escrever. Eles queriam transformar a sua realidade como a de outros, dando-lhes um senso de coletividade, onde o sujeito começa a pensar de maneira plural. Dessa forma, você acaba tensionando toda uma estrutura que quer individualizar, compartimentalizar, que tenta impedir que a Educação tome determinados rumos, pois se ela não questiona essa estrutura, acaba se submetendo a essa estrutura.

 

Você faz parte de uma grande parcela da sociedade que é devota do cristianismo. Quando observamos o cenário político-partidário atual, damos conta de notícias de que várias denominações cristãs (católicas e evangélicas) se mobilizaram para construir um cenário mais conservador, depois de algum tempo. O que significa esse avanço, considerando que essas pessoas supostamente incorporam os mandamentos da Bíblia, mas que sustentaram a eleição de um governador e de um presidente da República que manifestam abertamente discursos de ódio, intolerância e preconceito?

 

Até onde sei as igrejas evangélicas sempre foram conservadoras. A pauta progressista é minoritária. Historicamente, desde 1964, época em que se iniciou a ditadura, e depois em 1968, quando se estabeleceu o Ato Institucional no.5, você observa que esses movimentos tiveram uma relação muito afetiva com ditadores. Representantes da denominação da qual sou oriundo ratificaram e apoiaram o golpe e denunciaram àqueles que supostamente poderiam trazer o comunismo para o Brasil. Essa ameaça comunista vem desde a época de Jânio Quadros. Passou por Jango, Collor chegando até no “inominável”. É impressionante como, no governo Médici, consegue-se erradicar a luta armada, afinal de contas o Exército era muito mais forte, tinha uma presença quantitativa superior, e a luta armada era muito mal articulada. Ela era formada por adolescentes da classe média. Pouca presença de pobre, de negro. A segunda questão é que o movimento evangélico cresceu muito e por uma série de razões. O cenário brasileiro é favorável a isso.

 

Como assim?

 

O Brasil é um país em desenvolvimento, colonizado por Portugal, e muito inclinado e simpático a agências missionárias norte-americanas. O país olhava para elas com muito carinho e respeito, mas dando a elas um ar de superioridade. Essas igrejas fizeram um investimento maciço em educação, hospitais, tinham um enorme senso de cooperação mútua, levando em consideração que elas já estavam no Brasil antes da Proclamação da República, mas não havia o conceito de Estado Laico. Se você começar a estudar a gênese da educação infantil, modalidades esportivas, escolas, fundações e institutos no Brasil, todas vieram das igrejas protestantes, verdadeiras sociedades dentro da sociedade. Elas chegam a dizer, naquela época, que vão emancipar o Brasil de seu atraso. Na virada do século 19 para o 20, o movimento protestante é visto como o que vai emancipar o Brasil de seu atraso colonial de anos e anos e com um elemento muito curioso que foi os quase 400 anos de escravidão. O movimento batista investe em educação, formação teológica, saúde mas ele tem um referencial racista em sua essência, pois ele vem do Sul do Estados Unidos, igualmente racista. Pra você ter uma ideia, Martin Luther King sempre foi um personagem controverso para os batistas nos EUA, ele nunca foi tratado da forma como deveria ser tratado. Os batistas que desembarcaram essa denominação no Brasil eram racistas, eles eram inimigos de Martin Luther King. Assim como os milhões de negros aqui no Brasil, sempre tentaram invisibiliza-lo lá. Não há um único texto publicado por Martin Luther King nas editoras institucionais da Igreja Batista. Você encontra nas editoras comerciais. Ele precisava ser apagado. Então quando você abraça a justiça social, as causas humanitárias, as lutas e políticas públicas no contexto dos Direitos Humanos, você extrapola os limites do dogma religioso. Eu estive recentemente em um evento que incorporava essas lutas e sabíamos que determinados pastores não iriam porque eles não vão perder o emprego deles em nome da democracia. “Mesmo que Fulano ou Beltrano vão para o pau de arara eu não vou perder meu emprego”.

 

Mas, moralismos à parte, mesmo entre os pobres que abraçam as denominações evangélicas, não há entre eles a percepção de que desejar a morte de alguém é um pecado?  

 

Pra essas pessoas o inimigo é um vagabundo. Porque “o meu pai, a minha mãe e meu irmão, nunca foram abordados pelos policiais”. A argumentação é essa. Eles desconhecem a história de homens da esquerda que, em algum momento, sofreram grande risco. Você tem Fernando Henrique Cardoso, Rubens Paiva, Vladimir Herzog, uma gama de pessoas com endereço fixo, atividade profissional, uma empatia com a causa da esquerda, mas eles jamais colocariam em risco a democracia do Brasil, não foram para a luta armada. O Herzog era diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo! Ele foi, por livre e espontânea vontade, à sede do (Departamento de Ordem Política e Social) DOPS e foi “suicidado”. Isso sem falar de líderes sindicais ou até mesmo pessoas comuns que estavam apenas entregando panfletos para reuniões. Na concepção do Evangelho, se você está associado com qualquer discurso marxista, é um ateísta, e se você é ateísta você é um demônio. Mas não leram Marx, não leram “O Capital”, mas a referência deles é a Coreia do Norte, a Rússia. Nós somos a favor da vida em qualquer modelo de sociedade. O que os evangélicos querem é assumir o discurso de determinadas práticas, desumanizando pessoas que estão sendo vítimas de determinadas práticas! Se a vida é algo precioso e sagrado pra nós, não podemos relativizar. Mas o contexto histórico é colocado de lado. Eles sabem mais sobre as 13 tribos de Israel do que a História do Brasil. Eles não conseguem perceber, como disse Sérgio Buarque de Holanda, que a democracia é muito frágil. Quem proclamou a República foi um militar! O que eu percebo em minhas andanças pela Baixada, é que as comunidades cristãs esqueceram aqueles valores que a Bíblia tanto prega como o perdão. Por exemplo: se você encontra uma mãe que tem um filho que se desencadeou e optou pelo caminho das drogas e, logo após essa escolha, é morto, o assassinato é visto como algo natural, “ele fez por merecer”. Há, portanto, uma ideologia de punitivismo que vai terminar na barbárie. O Brasil se inclinando para a direita, será o norte da barbárie. Eu trabalho em comunidade, em favela e o que eu vejo é que há uma simplificação da realidade. Eu sou negro, minha mãe é negra, porém eu tive determinados fatores que me favoreceram, e muito, se comparado com os meus irmãos negros que nasceram na favela, pois ao contrário de muitos deles, eu estudei em colégio particular, fiz duas universidades, fiz duas pós-graduações. E percebi que quanto mais eu ascendia, percebia que menos irmãos de cor apareciam no meu caminho.

 

Um outro aspecto a ser levantado, graças a essa sua última observação, é que a esquerda, durante muito tempo, sempre pareceu se concentrar dentro de um monopólio ético sobre as minorias e as injustiças que sofriam, que incluem nesse grupo, os negros. Então, vieram as discussões sobre o racismo e seu combate. Criou-se uma perspectiva de que, automaticamente, negros deveriam escolher sempre a esquerda como um lado natural e lógico da História. Entretanto, um dos aspectos bizarros criados nesse panorama político-partidário que vivemos, foi o aparecimento do chamado negro de direita. Qual a análise que você faz sobre isso?  

 

Quando a Educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor. Os negros que votaram em Bolsonaro e que fizeram campanha pra ele, alguns séculos atrás, seriam o capitão do mato. Estariam dentro dessa engrenagem e oprimindo outros negros. O branco que minimiza e relativiza a escravidão e todas as políticas públicas compensatórias criadas nesses últimos anos, há alguns séculos, seria o meu senhor. Isso foi uma questão motivadora para que eu tivesse uma série de rompimentos, inclusive, no campo pessoal. Há um filme do Quentin Tarantino chamado “Django Livre” que traz um personagem icônico que é interpretado pelo Samuel L. Jackson, que ele ajuda a prender o Django (que também é negro). Esse personagem são os milhões de negros que se sentem aviltados quando veem um irmão de cor empoderado. Assim, no mesmo filme, tem a cena em que ele escapa da prisão e os outros negros, que estão com ele, permanecem na cela. Ou seja, a esquerda vai ter que, agora, procurar lideranças progressistas nas igrejas históricas se quiser dialogar com o povo de novo. Vai ter de reformular a sua estratégia de incidência, linha de presença, articulação, senão vai dar ruim, como se diz por aí. São pessoas que não sabem ou não querem dialogar com a igreja. Eu trouxe o (deputado estadual Marcelo) Freixo e tantos outros pra cá, para que esse norte fosse percebido pelo coletivo, pois se não construirmos comunidades de resistência, vamos ficar reféns para sempre dessa agenda nazi-fascista.  

 

Embora não esteja bem claro como vai ser construído esse processo, o próximo governo pretende combater o ativismo, o que pode atingir movimentos, projetos sociais, ONG´s, instituições e outras formas de organização que têm em sua essência alguma modalidade de ativismo. O que se tem conversado sobre isso?

 

Estamos muito preocupados. Embora saibamos que, entre a figura do candidato e do presidente, existe uma distância muito grande. O problema é a expectativa que isso gera aos seus eleitores. Os seus eleitores esperam que haja um rompimento de diversas políticas públicas como, por exemplo, o sistema de cotas nas universidades e tantas outras questões que os partidos políticos conseguiram pautar enquanto agenda. Se ele não fizer o que prometeu vai ser uma frustração sem tamanho, pois há perto dele o que há de mais arbitrário e reacionário. Precisamos encontrar forças na coletividade. Somos vistos como parte de um processo de limpeza que está sendo proposto aos seus eleitores. Eu estou me sentido um alvo e todas as pessoas que trabalham com crianças e adolescentes nas comunidades de fé e até mesmo na Casa Semente, estão tomando várias providências para se proteger, mas continuamos trabalhando da mesma forma que antes, não mudamos um centímetro o nosso planejamento. Nas redes sociais, temos que tomar cuidado com o que postamos, curtimos, compartilhamos. O que foi feito com Marielle abre um precedente muito perigoso para nós.

 

O que você acha que vai acontecer daqui pra frente?

 

Olha...a democracia está em xeque. Nossa liberdade de ir e vir está em xeque. O trabalho que eu e outros irmãos de luta e caminhada fazem, a rede que eu construí com o Fórum Grita Baixada, Casa Fluminense, Visão Mundial, Anistia Internacional, dentre outros, está tudo comprometido. Estamos orando muito um pelo outro, encorajando, fortalecendo. Temos de pensar em como vamos formar um outro pacto democrático. Precisamos de uma nova esquerda.