29 de abril de 2024

Entrevista do mês: Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Cidadania (Cesec)

O MEDO COMO INSTRUMENTO NORTEADOR DA SEGURANÇA PÚBLICA

FGB conversa com o cientista social sobre armamento das guardas municipais, dados sobre violência urbana e de Estado e como a mídia ainda delibera políticas de segurança pública através do medo.   

 

Graduado em Ciências Sociais na UERJ em 2007, Pablo Nunes tinha muito interesse em entender o impacto e as relações de diálogo que a cobertura da imprensa tinha a partir daquela época, especialmente em relação às políticas públicas de segurança. Na monografia, estudou as ideias como a mídia articulava as ideias de “paz” e “guerra”, pra entender e enquadrar alguns eventos especialmente o início do projeto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), quando da ocupação do morro Santa Marta (no Bairro de Botafogo ,zona sul do Rio) e chamada “retomada” do Complexo do Alemão.

 

- “Apesar de “paz” e “guerra” serem conceitos muito distantes, do ponto de vista dos seus significados, quando a gente via alguns outros símbolos que eram utilizados de forma adjacente à construção dessas narrativas, eu conseguia estabelecer alguns paralelos. Então, eu lembro muito que a matéria falando sobre o início do programa de pacificação do Santa Marta era ilustrada com uma foto de treinamento de tiro. Os policiais com fuzil e tudo mais. E o título da matéria era “a volta da paz no Santa Marta”. Depois da graduação, quis aprofundar o entendimento desses signos e significantes, analisando de forma um pouco mais, estrutural essa cobertura”, diz Pablo.

 

No doutorado, mudou o caminho de sua pesquisa, deixando de se concentrar na imprensa tradicional, e focando em postagens nas páginas da rede social Facebook, principalmente de comunidades e favelas do Rio de Janeiro, e como elas mobilizavam diferentes narrativas e constituíam diferentes ferramentas para lidar com a violência cotidiana. Analisou os avisos de tiroteios em operações policiais e a forma pela qual, nesses espaços, identificou um fenômeno que chamou de “engajamento forense”, ou seja, de pessoas que sabiam de alguns detalhes sobre um determinado caso de violência e se reuniam nesses espaços virtuais pra tentar entender e tentar descobrir as razões, os motivos e principalmente quem eram as vítimas dos casos de violência. 

 

Em 2013, entra para o Centro de Estudos em Segurança Pública e Cidadania (CeSec) pra fazer uma pesquisa sobre a avaliação de um projeto voltado pra dar suporte a jovens egressos do tráfego. E, desde então, nunca mais saiu de lá. Passou de assistente de pesquisa para coordenador de pesquisa, depois para coordenador adjunto do Cesec, cargo no qual fez sua estreia, resultado de uma estratégia de redesenho e renovação dos quadros da organização.

 

Nesses mais de dez anos do Cesec, desenvolveu uma série de frentes de trabalho, tendo se  dedicado atualmente a entender a adoção de novas tecnologias na segurança pública e seus impactos, principalmente sob a perspectiva do reconhecimento facial.

 

Entrevista a Fabio Leon  

 

A mídia jornalística ainda é uma espécie de responsável estruturante por transmitir uma sensação de insegurança aos seus públicos por expor tantos casos de violência?

Sem sombra de dúvida, a mídia tradicional tem papel influente e importante nessa circulação de informações, imagens, narrativas, ideias, análises que constroem essa sensação de insegurança na população. Mas hoje a disputa é mais acirrada. Se a gente parar pra pensar em todas essas mídias sociais, talvez excetuando o Facebook, que perdeu um pouco da sua relevância e hoje não faz mais tanto mais sentido, mas há perfis no Instagram e no próprio Twitter como o Alerta Tijucano, Rio de Nojeira, e tantas outras, que têm pautado a mídia tradicional. A gente vê que hoje em dia, a mídia tradicional é uma parte desse processo, mas, sim, existem elementos estruturantes nessas narrativas. O que eu não acredito mais é que a mídia tradicional seja a única a enquadrar as narrativas. Hoje a gente vê que tem uma certa tensão e uma pressão muito grande vindo das mídias sociais. Atualmente, o ecossistema de comunicação é muito mais amplo e a hegemonia que antes a mídia tradicional gozava, já não é mais a mesma. Tem muitas coisas interessantes que surgem a partir dessa quebra de hegemonia como comunicadores locais, redes de ativismo e redes comunitárias de compartilhamento de informação. Ao mesmo tempo também surge uma infraestrutura que permite que haja agrupamentos de neonazistas, de justiceiros se organizando através dessas mesmas páginas. Então, há um certo impasse em relação à própria natureza e essência dessa inclusão. Essa inclusão dá poder pra que as pessoas se comuniquem e alcancem populações e públicos maiores. Se isso vai ser positivo ou negativo, ainda não sabemos. Hoje, para além da deterioração dessa ideia de mídia social, a gente vê que o controle das grandes empresas tem se orientado a dar mais visibilidade a determinadas ideologias que não sejam calcadas na perspectiva dos direitos humanos. Se a gente observar o que é hoje o X (ex-Twitter) e como o Elon Musk vem ajustando algoritmos para que discursos de extrema direita possam circular de forma mais livre e anabolizada, percebemos que o cenário é outro.

 

Como essa sensação de insegurança se reflete em dados? Que indicadores se revelam os mais alarmantes e estão diretamente correlacionados com essa sensação?

Na maioria das vezes a gente tem um descolamento entre as sensações de insegurança com os indicadores, objetivos, vamos chamar assim, registrados pelas polícias, em relação a notificações de crime. Isso se dá por diferentes fatores. Não só do trabalho da polícia e do contexto de violência, bem como na produção de comunicação, que é, por exemplo, o que a gente chama de espelho invertido. É muito mais comum, e é muito mais frequente, que a gente tenha uma cobertura muito extensa na imprensa, e também nas redes sociais quando se trata de caso de homicídio, ou de homicídio com requintes de crueldade, do que da criminalidade mais corriqueira e mais rotineira. Por exemplo, quando falamos de furtos de celulares, nós temos centenas, às vezes milhares de furtos, que são notificados todos os anos. O espaço dado pra esse tipo de cobertura é quase mínimo. Isso fica mais gritante, quando a gente faz a comparação com os casos de homicídios, encontros de cemitérios clandestinos, esquartejamentos. São casos que ficam muito mais veiculados na imprensa, e com uma presença muito mais extensa. E aí, tem um adicional que eu acho importante de ser trazido, que não é apenas o caráter do crime, mas onde esse crime ocorre e quem é a vítima, como foi o caso do médico Jaime Gold, assassinado na Lagoa, em 2015, com amplíssima cobertura da imprensa, algo completamente desproporcional quando comparamos com assassinatos ocorridos na periferia. Então, não há esse deslocamento entre a sensação de insegurança e os indicadores. É muito mais comum a gente ser impactado e se sentir inseguro quando a gente sabe de um amplo espectro de casos de roubo do que de homicídios, mas, mesmo assim, a gente fica muito mais chocado quando são esses mesmos casos de homicídio vão pra imprensa. São diferentes questões que vão produzir diferentes entendimentos.

 

Alguns estudiosos sobre violência urbana e de Estado apontam uma série de problemas metodológicos ao recorrer a sistematização de dados disponibilizados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) e seus indicadores. Qual sua avaliação sobre isso?

Os dados produzidos pelo ISP, bem como por outros órgãos estatísticos nas outras unidades federativas, são sempre problemáticos e sempre precisam ser vistos com cautela. Primeiro de tudo, nenhum dado vai ser o dado da realidade. Nunca isso vai ser alcançado. A gente sabe que o que acontece, na realidade, é muito maior do que o que vai figurar nos bancos de dados do ISP, por diversas razões. Isso envolve sub-notificações, falta de consciência na polícia, trabalho mal feito das polícias. Às vezes isso interfere no próprio entendimento da vítima de que ela foi vítima de determinado crime. Não é raro a gente ver, por exemplo, nos casos de assédio sexual, de que só depois de anos a mulher vai entender que ela foi vítima de assédio sexual. Então tem diversos fatores que vão fazer com que esses indicadores não estejam dando conta da totalidade do que acontece na realidade. Mas apesar desses problemas, dessas limitações, da desconfiança, justa, que setores da população têm com os indicadores produzidos pelo Estado, eu sou da posição de que esses dados e informações são importantes e não devem ser jogadas fora. Porque, como todo dado, ele vai ser limitado. Dados nada mais são do que produtos de um determinado olhar, que o produtor do dado vai fornecer pra realidade, porque eles são todos limitados. A gente tem que se preocupar mais com a forma pela qual esses dados são gerados, como eles são organizados, sistematizados e quem os produz, do que a distância que esses dados supostamente têm sobre o que acontece na realidade. Pra mim é muito mais importante saber quais são as metodologias do ISP, quem está produzindo esses dados, se está sendo garantida autonomia pra esse órgão produzir os dados, do que necessariamente se esses dados vão estar, dialogando com todas as mortes que ocorreram em determinada cidade ou território. Eu acho que, como todos nós sabemos que os dados são limitados, a nossa tarefa é muito mais lutar e incidir sobre as metodologias e a transparência em relação às metodologias, do que necessariamente sobre a justeza dos dados em relação à realidade. É óbvio que quando a gente estiver discutindo metodologia dos dados e a transparência deles, a gente vai estar, no fim das contas, discutindo os instrumentos pelos quais um dado vai estar mais próximo da realidade do que discutir metodologia. A gente sabe que o número de operações que são realizadas no Rio de Janeiro é muito maior do que a gente registra. Mas o que a gente garante é que a metodologia está bem explicada, significada, desenhada e transparente. A garantia de que essa metodologia continua sendo aplicada continuamente na produção e geração desses dados, possibilita que a nós possamos usá-los como termômetro do nível de violência policial. Mas ainda sentimos a falta de informações mais sistematizadas e abrangentes. Por exemplo: indicadores de resolução de crimes. Essa divulgação é muito dificultada, por diversas razões, e é muito dependente de ações do Ministério Público.

 

Dados recentes da Polícia Civil do Rio de Janeiro enviados ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam expansão da criminalidade no Estado do Rio de Janeiro desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu as ações em favelas cariocas, em 2020, durante a pandemia de Covid-19. A justificativa seria a implementação da ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] 635, que impôs restrições à atuação policial em confrontos armados nos territórios. O senhor concorda com essa afirmação?

Há um desacordo completo da minha parte em relação à afirmação da Polícia Civil de que a criminalidade aumentou por conta da ADPF 635. Isso não é verdade. A gente sabe o quanto que a ADPF teve de impacto nessa questão. Que, em quatro meses, a decisão do ministro Edison Fachin introduziu efeitos na redução de letalidade durante operações policiais, mesmo com a Polícia Civil, encabeçada pelo antigo secretário de polícia civil, Alan Turnowski, hoje preso por corrupção, que passou a questionar, em 2020, essa decisão. Então é uma falácia, de que essa decisão do Supremo foi responsável pelo aumento da criminalidade. E, ao mesmo tempo, há de se perguntar: de quais crimes a Polícia Civil está falando?  Porque em todas as divulgações feitas pelo ISP mensalmente, é alardeada uma redução histórica dos homicídios, redução dos indicadores de roubo de carga, redução de outros indicadores de roubo. Então como é que essa realidade apresentada pelos dados do ISP, se encaixa nesse quadro de expansão da criminalidade apresentada pela Polícia Civil? Acho que a polícia deveria dar explicações em relação ao que ela quer dizer com isso. O que a gente sabe, no fim das contas, é que as polícias nunca aceitaram, por bem, fazer controle dessas letalidades. A gente está num momento muito crucial das políticas públicas de segurança, em que as polícias não querem mais ter nenhum tipo de controle dessas atividades, seja por instituições civis, seja pelo próprio Judiciário. Então, acho que tem muito mais a ver com uma queda de braço que as corporações estão tendo com esse controle do que necessariamente algo relacionado à realidade do crime no Rio de Janeiro como todo.

 

Sobre o uso de câmeras de vídeo corporais nos uniformes de policiais militares, que passaram a fazer parte do cotidiano dos batalhões de polícia a partir de maio de 2022, a publicação “Crime no Rio”, produzida pelo Cesec, aponta uma falta de informações oficiais sobre os critérios utilizados para a distribuição do aparato, bem como o método de armazenamento e sobre quem pode ter acesso a essas imagens. Por que falta transparência sobre o uso dessa tecnologia?

Há um grande problema que foi criado com essas câmeras, porque lá no começo da sua utilização, em São Paulo, elas realmente foram utilizadas como uma ferramenta de controle da violência policial. Então, como a gente está vendo corporações muito refratárias a essa ideia, as câmaras corporais foram alvo de uma intensa campanha de desmoralização da sua eficiência e do seu papel. Existe um cenário com diferentes estratégias para que as câmeras simplesmente não produzam os resultados que elas deveriam produzir. Não há uma governança dos dados, não há transparência, não há facilidade de acesso a esses dados e agora a última tendência é incluir questões técnicas como colocar reconhecimento facial nas câmeras e transformar os policiais em meras câmeras ambulantes de vigilância. Há um processo de desmoralização desse instrumento e isso passa pela falta de transparência. Pouquíssimos são os dados que a Defensoria Pública consegue obter das câmeras corporais. Há, também, uma dificuldade de acessar os dados dos contratos dessas câmaras.  Então, nesse momento, a gente está vivendo essa batalha sobre as câmaras corporais, a ideia do como elas vão ser utilizadas e que papel elas vão ter na nossa sociedade.

 

O presidente da Comissão de Análise da Vitimização da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, coronel Fábio Cajueiro, afirmou que as câmeras podem significar mais dificuldades aos praças nas operações policiais, pois os aparelhos ligados poderiam “comprometer a verificação de traficantes infiltrados nas residências e em famílias vizinhas” já que, estando em funcionamento, significaria a exposição de possíveis informantes que poderiam facilitar possíveis prisões. Essa justificativa faz sentido?   

Não faz muito sentido. Já que estamos falando de imagens que são muito difíceis de se ter acesso, inclusive pra nós do Cesec. Nossa posição é que a falta de facilidade no acesso, principalmente dos órgãos de controle, é uma das marcas na utilização das câmaras corporais aqui no Rio de Janeiro. Então, não vejo como essa utilização das câmeras possa comprometer a verificação de traficantes infiltrados nas residências em famílias vizinhas. Essa é uma postura muito mais ligada a uma tentativa de construir argumentos fracos para não ter a utilização das câmeras do que qualquer tipo de objeção factível e que possa ser levado a sério.

 

Recentemente, a cidade de Seropédica, na Baixada Fluminense, foi palco de um confronto armado entre traficantes e milicianos, onde um estudante da UFFRJ, Bernardo Paraíso, acabou sendo morto. Há, nesse momento, quatro possíveis modalidades de confronto no Estado do Rio de Janeiro: milícia x milícia, milícia x tráfico, polícia x tráfico, polícia x milícia, esta, talvez sendo a mais “rara”. Enquanto isso, o presidente da Câmara de Vereadores do Rio, Carlo Caiado (PSD), disse que o parlamento vai analisar se a guarda municipal da cidade poderá trabalhar armada, em projeto que poderá ser aprovada em junho. Com tantos grupos armados, tutelados pelo Estado, paramilitares e formado por facções criminais, é possível que haja uma nova intervenção federal na segurança pública como nos moldes do que aconteceu no Rio em 2018? Que resultados poderiam surgir de mais essa tentativa?    

Já se foi esse tempo em que a gente tratava de grandes guerras entre grupos do tráfico. Nos últimos anos, essas disputas se arrefeceram e hoje os palcos mais sangrentos se localizam mais na Zona Oeste, lugar que, historicamente, há uma tentativa de se dominar aquela área, principalmente onde se localiza a Cidade de Deus, que é área de domínio do Comando Vermelho que é quase que uma ilha dentro de várias outras comunidades e territórios dominados por grupos milicianos. Então, sem sombra de dúvida, a gente está vendo esse processo de micro fragmentação dessas possibilidades de disputa, algo que a gente não via em anos anteriores. Esse, talvez, seja um dos grandes desafios do Rio de Janeiro para os próximos anos.  Com a derrocada do grupo do Ecko, que é a maior milícia do Rio de Janeiro, e o não surgimento de uma nova liderança que possa galvanizar esses pequenos grupos de milicianos, a gente tem aí os ingredientes para um cenário explosivo. Quando a gente tem vários grupos em que não há um domínio claro de quem vai gerir os conflitos e orientar a atuação desses grupos, a possibilidade de ter sucessivas disputas entre essas “pequenas lideranças”, para regimentar influência é natural. É um processo ainda inconcluso. Das duas uma: haverá o surgimento de uma nova liderança, embora esse seja o cenário mais difícil de acontecer, pois não há, até agora, ninguém que pareça ter tantas relações, como o Ecko tinha, para poder fazer essa costura. O segundo cenário seria o dessa micro fragmentação que eu já citei. Há ainda a possibilidade um terceiro cenário, em que a polícia civil seria o fio condutor de controle e gestão do conflito entre esses micro grupos de milicianos. Sobre essa grande circulação de armas nas forças de segurança, pergunto o seguinte: será que a gente quer outro grupo armado sem planejamento, sem um desenho institucional mais maduro, que não abarque de maneira interessante e correta a utilização de armamento de fogo? Eu acho complicado. Lá em 1988, quando da promulgação da Constituição Federal, os constituintes decidiram por esse desenho da segurança pública, em que a principal parcela de responsabilidade recai sobre os Estados. Me parece que esse desenho já está ultrapassado e que precisa ser repensado. É preciso incluir o governo federal com mais prerrogativas dentro da segurança pública e repensar o papel dos municípios na segurança pública. Me parece que o papel da Guarda Municipal, em muitos lugares atualmente, é insuficiente ou não adequado aos problemas específicos de cada cidade. Agora, simplesmente entregar armas nas mãos das guardas municipais, sem repensar e sem rediscutir esse desenho conforme o que preconizou a Constituição, é esperar o aparecimento do pior cenário possível. A gente não vai ter uma repactuação dessas responsabilidades e está sendo entregue para a população, uma ideia equivocada de que mais agentes públicos armados vão trazer mais segurança para a população. Quando teve o Projeto de Lei 671/21 que alterava o Estatuto do Desarmamento, em que houve ali a inclusão da possibilidade das guardas municipais portarem armas, foi um alargamento desse entendimento. Então acho que a gente perde uma possibilidade de, realmente, fazer uma mudança na segurança pública que nos leve para o contexto de corporações mais afinadas com os reais problemas da sociedade. Apelar pra esse sentimento de medo da população, colocando armas como uma resposta rápida e simples é, ao mesmo tempo, ineficaz e possibilita o surgimento de outros problemas. Sobre a intervenção, não sei se fariam como em 2018, porque ela é muito cara no sentido de que o governo federal não se responsabiliza pelo o que acontece na segurança pública. Ou seja, ele não recebe nem os louros nem os ônus. É mais um desgaste do que qualquer outra coisa. A última ação para tentar dar uma resposta ao problema de segurança pública no Rio de Janeiro, naquela época, foi quando se estabeleceu uma GLO (Garantia de Lei e Ordem) localizada em portos e aeroportos. E temos que considerar que o atual governo do Estado tem sido mais colaborativo do que reativo em relação a esfera federal, nos aspectos da segurança pública. O governador ainda tem o controle e a incidência política enquanto poder executivo do Estado. Isso possibilita que o cenário permaneça como está. Pelo menos, por enquanto.

 

Muito se critica, especialmente para quem é da base, que a esquerda não tem um projeto de segurança pública que contemple as complexidades, contexto histórico e ressignificação de cidade, ainda mais quando nos deparamos com tantas ações de domínio territorial por parte de grupos armados como as milícias e o tráfico de drogas, em especial na Região Metropolitana do Rio e na Baixada Fluminense. O que ainda é possível fazer, em termos de políticas públicas, para impedir o avanço da criminalidade, considerando essas dinâmicas criminais, as desigualdades sociais e o recorte racial?

Eu acho que a esquerda, a direita e a extrema direita não têm projeto para a segurança pública. O avanço da extrema direita é baseado em apelos populistas, muito mais voltados a responder a esse sentimento de medo da população, do que necessariamente pensar um projeto ou uma política especialmente voltada para a segurança pública. Recentemente, o consórcio de governadores do Sudeste e do Sul (COSUD), apresentou um receituário mofado e ineficaz de proposição de segurança pública. Nada tem de projeto real com substância e desenho de política pública. Aquilo ali é mais um populismo penal, barato, reciclado, ineficiente e que já foi testado ao longo dos anos. Acho que, nesse sentido, toda a sociedade ainda está meio perdida. Principalmente porque o medo é um sentimento que suscita e pede respostas rápidas. A gente acaba não pensando, com calma, nas reais respostas que precisam de tempo e maturação para serem colocadas na realidade. Do ponto de vista das cidades, me parece que é cada vez mais importante repensar esse papel delas na segurança pública e como a gente enquadra a criminalidade no Brasil. Principalmente agora, com os olhos se voltando pra Região Norte, em que se descobre as relações do tráfico de drogas e armas com o garimpo ilegal, a exploração de madeira, pesca. O que acontece, há muito tempo no Rio de Janeiro, é a exploração ilegal do solo, de saibro, construções ilegais, grilagem, etc. Esse papel de fiscalização é eminentemente das prefeituras, de controlar a questão fundiária. Se houvesse, por parte dos municípios, uma forma de lidar mais holística com esses crimes, pensando na correlação com outros crimes de milícia, seria uma contribuição relevante para o combate a esses grupos. O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, há algum tempo, quando teve o episódio da queima de 35 ônibus na Zona Oeste por causa da morte do Faustão, que era primo do miliciano Zinho, afirmou que o governo estava “lidando com uma máfia”. E aí, lembrando de como Nova Iorque lidou com a máfia de construtoras no século passado, a gente vê o quanto que é importante não apenas tratar de polícia, mas investigar o braço financeiro da criminalidade, de como é feita a lavagem de dinheiro, de como os braços comerciais, da máfia e da milícia, se espraiam pela sociedade. Precisamos também pensar legislações específicas. A CPI das Milícias foi uma CPI importante, que apontou vários caminhos a serem seguidos. Acho que seria importante não só rememorar essas contribuições, mas, talvez, fazer uma nova CPI das Milícias, em que a gente possa colocar ali esse problema no centro. Ou seja, não faz muito sentido a gente afastar os municípios, principalmente os grandes municípios, dos debates sobre segurança pública e, principalmente, das responsabilidades em lidar com a segurança pública em suas multi-dimensões.