24 de setembro de 2019
Entrevista do mês: Fabio Araújo, sociólogo
“Os desaparecimentos ocorrem até dentro do sistema carcerário”
Especialista diz que por trás da violência de Estado, os desaparecidos forçados fazem parte de uma economia da morte.
Quando alguém morre, há o luto. Apesar da dor e da saudade, há a certeza do fim. Não há escolhas na hora de se sacramentar a perda de quem se ama. É preciso fornecer a difícil continuidade da vida aos que ficam. Isso quando o corpo em questão participou de todos os rituais de despedida, incluindo família e amigos. Mas e quando há o desaparecimento? Como lidar com o angustiante passar dos dias em que nenhuma informação sobre a localização de quem se ama é suficiente?
A entrevista que se segue trata de uma das formas mais cruéis de violência urbana: o desaparecimento forçado. O sociólogo Fabio Araújo, 39 anos, professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) transformou sua tese de doutorado no livro “Das Técnicas De Fazer Desaparecer Corpos: Desaparecimentos, Violência, Sofrimento E Política”. Ali estão expostas não apenas as manifestações de pesar de mães, familiares e movimentos que denunciam tal tática. Mas, também, as resistências que poder legislativo, sistema judiciário e o próprio Estado oferecem para dar os passos iniciais nos processos de investigação, construir uma legislação mais rigorosa para a responsabilização criminal dos envolvidos, desenvolver métodos mais eficazes na localização dos corpos e o mais grave: a recusa em categorizar o desaparecimento forçado como crime.
A proximidade de Araújo com as discussões relacionadas com a violência de Estado começou com a militância no Movimento dos Sem Terra (MST), na cidade mineira de Governador Valadares, sua terra natal. Seu irmão, advogado, promovia a defesa de integrantes do movimento, além de outras organizações que atendiam adolescentes em conflito com a lei e que necessitavam de assessoria jurídica.
Da militância, a violência de Estado o conduziu para a vida acadêmica onde, posteriormente, trocou os estudos sobre a produção de violência no campo, direcionando-a para a esfera urbana. Ao se mudar para o Rio de Janeiro, lecionou e morou por 7 anos na Pavuna (bairro da zona norte da cidade do Rio). Seus alunos eram majoritariamente provenientes dos complexos do Chapadão e o da Pedreira. Volta e meia recebia a notícia de que um deles era preso ou morto em circunstâncias que poderiam ter ou não a participação de policiais. “A violência é um dos aspectos fundamentais que afetam a vida das classes populares. Me identifiquei por pertencer a essa classe e categoria social e por meus alunos vivenciaram esse fenômeno. Isso despertou em mim uma espécie de engajamento profissional nessa causa.”, diz.
Sobre os desaparecimentos forçados, costuma classificá-los como narrativas do terror, em função dos relatos de como o corpo ocupa essas tecnologias de morte. “É uma forma de comunicar que não está simplesmente na morte em si. Não é mais dar um tiro e eliminar um algoz, mas um processo ritualístico de destruição do corpo. Dessacralizá-lo também é uma forma cruel de simbologia onde a morte se transforma numa mensagem a quem está subordinado a esse poder”, diz.
Entrevista a Fabio Leon
Por que tantas pessoas desaparecem e em quais circunstâncias isso acontece?
As circunstâncias são várias e esse é um dos problemas em disputa sobre a categorização dos desaparecimentos forçados e desaparecidos. Para a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, por exemplo, é uma nomenclatura meramente administrativa para nomear uma situação. Ou seja, não sabem o que aconteceu. Ela engloba várias situações, na verdade. Desde um desaparecido que sumiu de forma voluntária, que se perdeu, saiu de casa, etc. Hoje há um grande debate sobre isso. Existe uma linha de pesquisadores que propõe uma categorização que seria a de desaparecidos civis, cuja aparição se deu em um período pós ditadura civil militar, como uma forma de se diferenciar dos desaparecimentos políticos. Mas os desaparecimentos forçados são uma categoria que serviu para nomear, também, um tipo de violência ainda não completamente entendida que era o desaparecer com os corpos. Não que ainda fosse especificamente um homicídio, pois não havia a presença de um corpo e, portanto, não haveria a materialidade de um crime. Foi uma forma que se construiu na ditadura, e entre os movimentos contra a ditadura, para se poder falar sobre essa realidade.
Por que o desaparecimento de um corpo é uma violência política?
Porque uma das dimensões do poder e do exercício da soberania política, em última instância, é o poder de matar. O desaparecimento é uma das formas desse exercício, que é a eliminação física, a ocultação do cadáver, na destruição do corpo.
O filósofo francês Michel Foucault fala muito de biopoder (termo criado originalmente para referir-se à prática do Estado em obter a subjugação dos corpos por meio de variadas formas de controle social de populações específicas como a carcerária ou a LGBT, por exemplo). Estaríamos diante de uma espécie de “necropoder”?
Sim, acho que sim. Podemos nomear dessa maneira. É uma forma de produzir a morte. O que os desaparecimentos forçados nos provocam é como eles se inserem enquanto economia política e quais as tecnologias são utilizadas para a produção desse contexto. Nós falamos que existem regimes de produção da morte e esse é apenas um deles. Uma das coisas que têm me chamado a atenção e que pode ser configurado enquanto desaparecimento forçado é o desaparecimento de presos. É a grande novidade que surge.
No próprio sistema carcerário?
Exatamente.
Mas como isso funciona?
Isso ainda é um grande exercício de interpretação. Não temos acesso a esse cenário nebuloso, aos mecanismos que produzem isso. Não existem provas sobre essa dinâmica. Entretanto, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, um departamento vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, produziu um relatório logo após o massacre ocorrido no presídio de Alcaçuz, Rio Grande do Norte, em novembro de 2018. Ali foram contabilizados o desaparecimento de 113 presos. Simplesmente sumiram! Diversos questionamentos surgiram a partir daí. Isso pode ter acontecido em outros massacres, como o ocorrido em Pedrinhas (Maranhão), Altamira (Pará) e Manaus, esses dois últimos, basta lembrar, ocorridos apenas nesse ano. Encontrei um pesquisador que entrevistou ex-presos de um presídio no Amazonas e que relataram essa dinâmica. Essa prisão fica praticamente no meio da Floresta Amazônica e, durante uma fuga, aconteceram vários fuzilamentos. Os corpos foram enterrados no entorno e dentro do próprio presídio. São covas rasas clandestinas dentro de uma unidade prisional. Ou seja, o desaparecimento forçado tem a efetiva participação de agentes de segurança do Estado ou com a aquiescência de algum outro grupo organizado.
Em que medida, a atual política de segurança pública do governo do Estado do Rio de Janeiro pode contribuir para o aumento dos desaparecimentos forçados, considerando que ela adota a metáfora de guerra, da política de enfrentamento e repressão e da guerra às drogas em comunidades pobres?
Os próprios agentes do Estado, quando estabelecem relações de colaboração com determinadas organizações, como as milícias ou o tráfico, acabam transferindo essas técnicas de desaparecimento. Existe, porém, uma dimensão muito importante a ser considerada que é a da militarização. Militarizar em último caso, significa assumir uma produção de morte. É uma militarização que está diretamente atrelada a mercados criminais e mercados de proteção que acabam sustentando outras formas de mercados não lícitos, porém “aceitos” dentro do Estado. A garantia de funcionamento desses mercados ilícitos é a garantia armada, uma indústria de armas com forte circulação. Então passa a haver uma desconexão entre o que seria as mercadorias e as pessoas dentro desse processo. O encarceramento em massa passa a ser um mercado, as operações em favelas e periferias precisam atender a um mercado, as mortes nessas operações são o indicador de outro tipo de mercado. As milícias fazem parte de um mercado que precisa se alimentar a todo instante. E tudo reforça a produção de desaparecimentos ... que também não deixa de ser um mercado.
A Baixada Fluminense apresenta que tipo de perspectiva em relação a esse cenário?
A Baixada tem uma dinâmica própria, embora o padrão violento das polícias seja identificado em outras localidades, ao mesmo tempo em que há a existência de milícias com comportamentos semelhantes em outros territórios. Fica difícil dizer se há uma diferença sem haver uma pesquisa específica sobre o assunto. Na verdade, há uma grande lacuna em relação a esse cenário na Baixada, do ponto de vista da sociologia urbana e da violência que não leva em consideração o que acontece nessas regiões. Não há ainda uma produção científica que tenha investigado com seriedade essa temática.
Os desaparecimentos forçados são um indicador de que tanto as instituições judiciárias bem como o próprio sistema de justiça em si são ineficazes em reduzir o problema?
Eu acho que tanto o sistema de justiça, o poder judiciário e a própria política de segurança pública fazem parte do problema. Essas ramificações de poder acabam produzindo tantas mortes quanto um grupo de extermínio, se você for verificar em graus comparativos. Se formos considerar o momento em que estamos vivendo, vemos autoridades públicas que permitem em suas falas públicas a prática de tortura, de homicídios, sempre com o aval do sistema judiciário. Recentemente há um debate que afirma que o sistema judiciário permite a expansão do poder de polícia. Em vez de controlar o exercício do poder policial, o sistema carimba determinadas ações da polícia. Se formos analisar, por exemplo, os autos de resistência, que ajudam a compor essa especifidade de morte, e considerando que quase não há abertura de inquérito para investigações dessa natureza, imagina como o Estado se comporta nos casos de desaparecimentos forçados.
Em relação às denúncias de desaparecimentos forçados que são encaminhadas às delegacias, o que pode ser dito sobre o acolhimento e os procedimentos de investigação?
Hoje existe uma delegacia especializada para tratar casos de desaparecimentos forçados, que é a DDPA (Delegacia de Descoberta de Paradeiros). As chamadas delegacias normais fazem apenas o registro, pois antigamente não se realizava essa prática com tanta rapidez. Agora há mais agilidade. As delegacias se negavam a fazer o registro de forma imediata e sugeria-se que se esperasse 48 horas para se oficializar o desaparecimento. Fora isso, tentou-se criar um Banco Nacional de Desaparecidos, mas que praticamente não foi adiante. Continua sendo uma política muito frágil por conta da dificuldade do que seria posto como informação nesse banco de dados. O processamento desses casos tem muito a ver com a interpretação que se faz deles. Tem uma pesquisadora do IFCS chamada Letícia Ferreira que fez uma pesquisa em uma delegacia. Ela mostra como o entendimento sobre desaparecidos tem múltiplas variações. Ora como um problema familiar, ora como um problema a ser resolvido apenas por assistentes sociais. O importante é que agora os desaparecimentos ganham sua importância enquanto indicadores de violência. Hoje quando você pega Boletins de Ocorrência pra analisar como o Estado tem registrado isso, percebo uma mudança de comportamento. Para a minha pesquisa, eu analisei diversos B.O´s e percebi que há mais detalhamentos circunstanciais em suas narrativas. Isso possibilita aprofundarmos mais as pesquisas que queiram seguir esse caminho. O problema é que o Estado insiste em colocar em caráter de sigilo aquilo que deveria ser de interesse público, principalmente quando se trata de uma violência que ele próprio produz. Com isso, ele boicota as possibilidades de entendimento de sua própria violência.
Em seu livro há também algumas problematizações sobre dilemas jurídicos em relação aos desaparecimentos. Que dilemas são esses e de que forma eles podem ser prejudiciais em relação a promoção de políticas públicas específicas?
O problema jurídico é que não há uma tipificação que enquadre o desaparecimento como crime. O que temos é uma série de protocolos internacionais que, em tese deveriam orientar a produção de uma legislação brasileira específica. Não existe sequer uma categoria provisória dentro dos chamados desaparecimentos gerais. Com isso, todos os casos são arquivados, processados e torna-se impossível descobrir o que está por trás dessas circunstâncias. É uma massa de dados que precisaria ser muito detalhada. Além disso, conforme algum tipo de desaparecimento se apresente em maior grau de evidência, é preciso que alguma política pública mais diferenciada seja implementada. E se não houver essa política pública dificilmente obtém-se a responsabilização dos agentes de segurança que, por ventura, estejam envolvidos.
Por que o Estado ainda não se organizou para elaborar alguma política pública de reparação econômica e/ou psíquica não somente para os familiares de desaparecimentos forçados, mas para as vítimas de outras formas de violência que ele mesmo produz?
Porque é um Estado que não reconhece a violência que pratica. Basta ver que os crimes acontecidos na época da ditadura civil militar até hoje não são reconhecidos. A Lei da Anistia serviu apenas para desresponsabilizar criminalmente os agentes de segurança do Estado e desqualificar o papel da vítima, invertendo a narrativa que poderia gerar legitimidade em seu depoimento. A vítima se transforma em réu. Muitas investigações não avançam porque o foco é tentar encontrar fragilidades na vida pregressa da vítima para se construir reputações morais duvidosas para que a validade de suas reivindicações seja questionada. Parece que a pergunta central se desvia dos fatos sobre sua morte, sendo mais importante identificar quais circunstâncias que poderiam “autorizar” o seu assassinato. Um dos aspectos do pacote anti-crime do ministro da justiça Sérgio Moro é exatamente esse e está configurado no dispositivo chamado excludente de ilicitude. Que relativiza esse poder soberano de matar e cujos autores não se tornam passíveis de serem julgados, embora haja a efetividade do excesso e até de arbitrariedades que nortearam a decisão de puxar o gatilho.
Seu livro fornece uma boa discussão sobre a noção do que é ser vítima da violência de Estado nessas circunstâncias. Entretanto, setores mais à direita costumam usar de forma sarcástica, pejorativa e discriminatória o termo vitimização, ao se referir a defensores de Direitos Humanos que apenas “protegem bandidos”. Como você analisa isso?
Há uma grande disputa sobre a ideia da vítima, uma discussão contemporânea em vários contextos, no sentido de tentar encontrar a legitimidade de quem está reivindicando o estatuto da vítima. Num cenário de militarização, do encrudescimento de um discurso de guerra, de um poder bélico e de um questionamento sobre o que é ser vítima da violência de Estado, as vítimas em si são tratadas como bandidos. O que os movimentos e seus integrantes precisam fazer é um trabalho de limpeza moral. O que a direita tem feito é criminalizar territórios, pobreza, comportamentos, condutas, de forma a questionar o papel da vítima nesses cenários. Na verdade, elas não seriam vítimas e isso é mais um obstáculo para se criar políticas reparatórias.
SERVIÇO:
DDPA - Delegacia de Descoberta de Paradeiros
Endereço: Avenida Dom Hélder Câmara, 2066 - Jacarezinho, Rio de Janeiro
Plantão: (21) 2202-0338 / (21) 2582-7129
E-mail: servicodescobertadeparadeiros@pcivil.rj.gov.br
Facebook: Delegacia de Descoberta de Paradeiros
Twitter: @DDPA_RJ
FICHA TÉCNICA:
Título: Das “técnicas” de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência, sofrimento e política
Autor: Fábio Alves Araújo
Categoria: Ciências sociais
Número de páginas: 224
Editora: Lamparina