14 de fevereiro de 2019
Fórum Grita Baixada + Rio On Watch
COMO UM BAIRRO PERIFÉRICO DE DUQUE DE CAXIAS MANTÉM VIVA A CULTURA HIP HOP
Família Lanatanpa, evento mensal no Bairro Pantanal, levanta a bandeira do movimento
Vindo de grupos de negros que protestavam contra a exclusão do sistema, o movimento hip hop ganhou facilmente os territórios brasileiros em meados da década de 1980, 10 anos depois dos primeiros rolês em South Central, região da Califórnia (EUA). Cada favela, que se auto-intitulava uma zona periférica, tinha um grupo ou artista solo que defendia as bandeiras de igualdade, liberdade e unidade, como diria o rei do soul, James Brown. Era o que se chamava, na sua gênese, de “música de protesto”. Chuck D, o messiânico líder do grupo Public Enemy, não à toa, descreve o rap como “a CNN dos negros”.
Enquanto conjunto de expressões artísticas que costumam mesclar moda urbana, apresentações em grafitti (pinturas artísticas com spray de tinta) performances de rap (sigla em inglês para “rithym and poetry”, que há anos ganhou a sua adaptação tupiniquim, o “rep”, ritmo e poesia), além das batalhas entre MC´s, (mestres de cerimônia), o hip hop passou por transformações. Adquiriu novas roupagens e texturas musicais, foi consumido em todas as classes, peitou o funk nas origens humildes e na ostentação, flertou com artistas não pertencentes ao gênero e, por fim, tornou-se uma pequena fábrica de hits. Agora, o hip hop ganha um “novo-velho” contexto, o de ser mais uma forma de resistência, dessa vez nos próprios territórios. De novo.
A roda de conversa do projeto Família Lanatanpa, evento mensal no bairro Pantanal, periferia de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, é a segunda iniciativa do tipo, testemunhada por Fórum Grita Baixada (https://forumgritabaixada.org.br/esporte-e-hip-hop-para-revitalizar-a-periferia ), que precisou incentivar outras ações, não necessariamente correlatas ao movimento, para ser vista sem restrições em suas comunidades. Embora seja prematuro chamar de tendência, o primeiro, acontecido em Lagoinha, periferia de Nova Iguaçu, precisou solicitar a presença de equipes de lutas marciais e de outras modalidades esportivas para ganhar legitimidade. O motivo seria certa antipatia de igrejas neopentecostais mais conservadoras que acreditam que o hip hop “é coisa de bandido”.
- “Não temos nenhum problema aqui com eles (os evangélicos), mas já escutei comentários desaprovando o tipo de música, as roupas e todo o resto. Queria que eles compreendessem melhor o que se passa, como é o projeto e quais são as nossas reais intenções. Isso aqui é uma necessidade cultural, uma troca de informação que identificamos ser mais urgente do que qualquer outra coisa. Era o que a galera jovem queria, era o que o bairro estava precisando”, diz Juliana Maia, uma das idealizadoras do Lanatanpa.
Hip hop não é crime
De fato, existe uma série de preocupações para tentar desmistificar qualquer tipo de preconceito que envolva os jovens que participam das festas. Em eventos criados em uma rede social, por exemplo, é comum a organização do Lanatanpa (um anagrama para Pantanal) se posicionar explícita e favoravelmente sobre a proibição de consumo de qualquer tipo de droga ilícita. A mensagem é repetida através de memes diferenciados. Há até uma “geloteca”, uma simpática geladeira que serve de miniblioteca, cuja troca de livros é liberada e incentivada. Desde sua criação, em 2015, o projeto sociocultural traz essa preocupação em conciliar saúde, educação, arte e conhecimento através do hip hop. Como se não bastasse, há ainda o recolhimento de doações como roupas e alimentos não-perecíveis para os moradores mais pobres da região.
E não foi diferente numa roda de conversa que abordaria o meio ambiente. Convidados para serem os mediadores, a professora de literatura trans, Diana Rodrigues, e o pesquisador de Relações Étnico Raciais do CEFET, Wallace Oliveira, expuseram aspectos contemporâneos que norteiam o tema. Um deles, o racismo ambiental, é temática que deverá nortear os espaços de discussão de forma mais expressiva em breve, ainda mais considerando a atual agenda do governo de Jair Bolsonaro, que parece ter transformado as questões ambientais em tabús com viés ideológico.
Empresas “verdes”, mobilidade urbana, consumo sustentável e agricultura orgânica e familiar, também foram temas pautados. Nesse último tópico, a professora Diana admitiu desconhecer inciativas na Baixada Fluminense, sendo cuidadosamente corrigida pelo repórter que informou sobre a existência, em Nova Iguaçu, da cooperativa Feira da Roça, formada exclusivamente por produtores rurais e apadrinhada pela Comissão Pastoral da Terra, entidade vinculada à Igreja Católica para as questões do campo. E daí surgem comentários sobre o aterro sanitário de Gramacho, um dos maiores pesadelos ambientais de Duque de Caxias, quiçá da Baixada Fluminense, que ainda recebe caminhões de lixo mesmo depois da sua desativação.
Onde tem “flow” não entra “trap”
Após a roda de conversa, eis que surge o momento de aumentar o groove do baixo e botar fogo nas carrapetas. DJ a postos, é hora de curtir. O elenco é diversificado. Tem grafiteiro, artesão, poetas, poetisas, além de b-boys, é claro. Na última edição do FL, ocorrido na Praça do Sossego, local de grande efervescência na comunidade nos fins de semana, era evidente a divisão dos espaços. Barraquinhas de venda de batata-frita, açaí, churrasquinho, dentre outras guloseimas, contornavam suas imediações. Enquanto os MC´s começavam o aquecimento para entoar suas rimas, do outro lado, há uns 50 metros, um grupo de católicos, munidos de um microfone a plenos decibéis, cantava louvores e anunciavam ações de evangelização ou conversão para os presentes.
Aproveitamos para trocar uma ideia com Anderson Maia, o mentor intelectual do Família Lanatanpa. Técnico em refrigeração por opção de sobrevivência, ele disse que teve a ideia de montar uma programação cultural nos moldes do projeto Vivar, uma iniciativa do artista MC Marechal, criador das Batalhas do Conhecimento, que se tornaram atração há 4 anos, no Museu de Arte do Rio (MAR), na praça XV, região portuária do município da cidade. Diferente das tradicionais batalhas de MC´s, em que prevalece a troca de “insultos” versados em bases musicais pré-gravadas (beat), como modo de se testar o poder de improviso (free-style) e criatividade nas rimas, na Batalha do Conhecimento há uma reflexão conjunta entre os participantes ao abordarem temas complexos e cotidianos como direitos humanos, violência, racismo, educação, machismo, etc. Ou seja, o alvo das ofensas passa a ser o próprio sistema. Maia explica como isso mudou a sua vida.
- “Aquilo mexeu comigo de tal forma que me senti quase na obrigação de fazer algo pela minha comunidade. Sou cria do hip hop e queria dividir isso com a molecada do Pantanal. Quantas vezes a gente se desloca pra Zona Norte, pra Lapa, e quase sempre precisa se preocupar com várias coisas, dentre elas a nossa segurança. Essa distância fez com que eu me mobilizasse pra fazer o Família Lanatanpa.”, diz Maia.
E quem cola e ajuda a fazer o movimento? Conversamos com alguns artistas para saber um pouco mais sobre suas histórias. Um deles, Coman MC, conta que era frequentador assíduo de uma igreja evangélica no bairro. Por causa de uma deficiência física adquirida graças a um acidente, tentou recuperar a autoestima através da fé. Mas foi justamente onde deveria encontrar paz que acabou sendo apunhalado pelas costas.
-“Comecei a ser zoado pelas pessoas da própria igreja. Aí eu soube que tinha um evento chamado 5ª. Batalha Rap Free Jazz, na Praça do Galo, ali no Parque Fluminense (Duque de Caxias). Já gostava do estilo e ali eu descontei toda a minha raiva nas rimas. O pessoal viu que eu tava chateado pelo o que tinha acontecido e quiseram me conhecer melhor. Me ligaram para saber como eu estava. Encontrei mais acolhimento no movimento hip hop do que na igreja”, diz Coman.
Ele aproveita para revelar uma espécie de racha conceitual e artístico que acontece em vários grupos de hip hop país afora. Coman diz que os grupos de rappers se dividem em duas espécies. A que defende o “flow”, ou seja, uma preocupação com o desempenho da fluidez que a letra se encontra com o ritmo de cada rap, e a turma do “trap”, que seria uma vertente com menos vocais, onde a musicalidade prevalece sobre a verborragia.
Marilza Floriano Barbosa, ativista da Frente Estadual pelo Desencarceramento, da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense e membro da coordenação ampliada do Fórum Grita Baixada, além de moradora do Pantanal, diz que se surpreende com os resultados alcançados até agora pelo Família Lanatanpa. De admiradora, passou a ser apoiadora do projeto.
- “Eu fiquei muito encantada com a organização deles. Eles possuem uma infraestrutura, mas que vem da colaboração de várias pessoas do local. O Lanatanpa ajudou a ocupar, de forma peculiar, um espaço que sempre foi das igrejas e do pessoal do pagode. Eles mostram a diversidade da cultura precisa ser mais divulgada e apoiada. O hip hop é uma expressão popular!”, complementa Marilza.