Artigo 

20 de dezembro de 2018 

Violência e Segurança Pública na Baixada

Giselle Florentino, economista, mestranda em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da

Universidade Federal Fluminense e sistematizadora de dados do projeto Direito à Memória e Justiça Racial do Fórum Grita Baixada

A única luta que se perde é aquela que se abandona.” (Carlos Marighella)

 

Em 2016, o Brasil alcançou a marca histórica de 62.517 homicídios, segundo informações do Atlas da Violência.  Isso equivale a uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, que corresponde a 30 vezes a taxa registrada na Europa. Apenas nos últimos vinte anos, 1.059.201pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil, ou seja, um pouco mais de um milhão de pessoas tiveram suas vidas ceifadas devido à violência e as políticas de segurança pública ineficiente. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. Todo ano, 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são mortos. A taxa de homicídios entre jovens negros é quase 4 vezes maior do que a verificada entre os brancos, o que ratifica o processo em curso do genocídio da população negra, principalmente o da juventude negra.

 

Uma das principais facetas da desigualdade racial no Brasil é a forte concentração de homicídios na população negra. Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras.  A desigualdade das mortes violentas por raça/cor, que veio se acentuando nos últimos dez anos, quando a taxa de homicídios de indivíduos não negros diminuiu 6,8%, ao passo que a taxa de vitimização da população negra aumentou 23,1%. Assim, em 2016, enquanto se observou uma taxa de homicídio para a população negra de 40,2, o mesmo indicador para o resto da população foi de 16, o que implica dizer que 71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no país são pretas ou pardas. “É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos”, destaca o Atlas da Violência de 2018.

 

É o caso do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência, ano base 2015, que demonstrou que o risco de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,7 vezes maior que o de um jovem branco. Já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública analisou 5.896 boletins de ocorrência de mortes decorrentes de intervenções policiais entre 2015 e 2016, o que representa 78% do universo das mortes no período, e, ao descontar as vítimas cuja informação de raça/cor não estava disponível, identificou que 76,2% das vítimas de atuação da polícia são negras.

 

Uma das áreas de maior violência letal do Estado do Rio de Janeiro se concentram nos municípios da Baixada Fluminense. Em 2016, a taxa de homicídio na Capital foi de 20,5 mortes violentas a cada 100 mil habitantes, enquanto na Baixada foram foi 47,6 mortes violentas a cada 100 mil habitantes, mais que o dobro do índice registrado na Capital. Ademais, o município de Queimados foi considerado o município mais violento do Brasil, com 134,9 homicídios a cada 100 mil habitantes, seguido por Japeri que registrou 95,5 mortes violentas a cada 100 mil habitantes.

 

De acordo com pesquisas do ISER[1], os principais tipos de morte violentas registrados na Baixada Fluminense são devido a homicídios, encontro de cadáver e intervenção policial. Em relação aos perfis das vítimas, 90,1% eram do sexo masculino, 72,8% eram pretas ou pardas, 52,2% não teriam completado o ensino fundamental e 36,7% das vítimas tinham até 24 anos. Portanto, na Baixada Fluminense está em curso o processo de genocídio da juventude negra e pobre do território.

 

A tendência de diminuição dos casos de homicídios e letalidade no Rio de Janeiro ao longo dos anos 2000 não é verificada na Baixada Fluminense. Pelo contrário, houve um aumento da violência na região que indica o movimento de interiorização da violência a partir da implementação das UPPs na capital. “A violência, por ser um fenômeno complexo e multicausal evidencia a necessidade de uma atuação interdisciplinar e intersetorial, que atue de modo a prevenir e reduzir os índices alarmantes de mortalidade, principalmente da população negra que é a mais afetada. Cardoso et al. (2016)”. Sendo necessário ressaltar a importância do enfrentamento de um racismo institucionalizado e para a necessidade de desmilitarização da política de segurança pública para garantir a vida dessas pessoas.

 

[1] Mais informações na publicação: Comunicações do ISER: Homicídios na Baixada Fluminense – Estado, mercado, criminalidade e poder.

 

O Instituto de Segurança Pública (ISP) é um órgão responsável por pesquisa, análise criminal, capacitação profissional e Coordenação dos Conselhos Comunitários de Segurança no Estado do Rio de Janeiro. Sendo responsável pela geração dos indicadores de Letalidade Violenta, sendo um dos indicadores estratégicos de criminalidade que compõem o Sistema Integrado de Metas e Acompanhamento de Resultados (SIM) desenvolvido pela Secretaria de Estado de Segurança Pública.

 

O indicador de Letalidade Violenta é composto por outros 4 indicadores, são eles: homicídio doloso[1], homicídio decorrente de intervenção policial[2],  latrocínio (roubo seguido de morte) e lesão corporal seguida de morte. No gráfico podemos observa a tendência de diminuição dos casos de letalidade no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo, que ocorre a tendência inversa na Baixada Fluminense, registrando em 2008, 2218 casos (o mais valor desde o início da série histórica), ficando evidente o movimento de interiorização da violência a partir da implementação das UPPs na capital.

 

Essa mesma tendência é registrada na Taxa de Letalidade Violenta, ao longo da trajetória podemos observar o refreamento dos indicadores na Capital em contrapartida a aceleração das altas taxas registradas na Baixada Fluminense, indicando uma ineficiência na execução das políticas de Segurança Pública. Neste contexto, pensar as políticas sociais implementadas no Brasil sob a orientação de governos neoliberais comprometidos com a valorização do capital financeiro e da acumulação de excedente, elucida o processo de monetarização das políticas sociais, em que estimula-se a transformação de direitos sociais em mercadorias, gerando novos espaços de reprodução da acumulação de capital e a substituição do acesso a serviços universais garantidos pela Constituição em serviços privados sob a égide do capital financeiro.

 

O ajuste fiscal, levado ao extremo na atual gestão federal, tem significado cortes severos no orçamento de programas sociais, o que coloca em risco direitos básicos e contribui para exacerbar desigualdades no país.  A escolha de combater os déficits fiscais do país com redução de gastos públicos tem afetado principalmente os investimentos em direitos humanos, proteção social, mudança climática, políticas para jovens, de igualdade racial e gênero. Em algumas áreas, o volume das perdas torna inviável a manutenção dos programas. É o caso das políticas de promoção dos Direitos da Juventude, as mais prejudicadas, com queda de 83% no orçamento. Os programas de Segurança Alimentar e Nutricional tiveram corte de 76%. Já as iniciativas relacionadas a mudanças climáticas perderam 72% dos recursos.  Num país em que o déficit habitacional era de 6,2 milhões de domicílios em 2015, programas de moradia digna sofreram redução de 62%, mesmo percentual das perdas na área de Defesa dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. O corte nas áreas de Promoção da Igualdade Racial e de Política para Mulheres eliminou, respectivamente, 60% e 53% das verbas. Enquanto isso, os pagamentos do serviço da dívida dispararam. Os dados mostram que as despesas com juros e amortizações da dívida interna aumentaram 90%, enquanto os gastos com refinanciamento da dívida externa tiveram crescimento de 344%. 

 

A austeridade, Emenda Constitucional 95, em particular, não é um plano de estabilização fiscal, mas um ataque aos direitos humanos dos brasileiros – em especial, das mulheres, dos negros e daqueles em maior risco de pobreza – o que aumenta a desigualdade social e econômica. Promulgada em 15 de dezembro de 2016, a EC 95, do teto de gastos, instituiu uma nova regra fiscal, que congelou o gasto público real por 20 anos. Significa que, mesmo que a economia deslanche, a população cresça e os governos mudem, por duas décadas não será possível aumentar as despesas públicas acima da inflação. 

 

Em 10 anos, as desigualdades sociais relacionadas a etnia, gênero e situação de domicílio (urbano ou rural) diminuíram no país. Apesar disso, o Brasil ainda apresenta muitos contrastes entre a sua população – a exemplo dos negros, cuja renda média ainda é metade da dos brancos. A população negra é, ainda, a mais suscetível à violência: um homem negro tem oito vezes mais chances de ser vítima de homicídio no Brasil do que um homem branco. Sendo necessário “reforçar e ampliar as políticas públicas que combatam o racismo e a discriminação e garantam oportunidades iguais para a população negra, nos mais diversos âmbitos: saúde, educação, cultura, segurança, trabalho” (UNFPA,2017) 

 

Em síntese, os direitos sociais estão particularmente em risco com as políticas de austeridade, que desviam recursos para o pagamento de despesas financeiras do governo, beneficiando apenas um punhado de banqueiros e rentistas. O cenário de precarização das políticas sociais, desmonte e retirada de direitos sociais corroboram para a intensificação da superexploração do trabalho. Tais medidas em sua essência sinalizam uma política econômica comprometida em priorizar o pagamento da dívida pública, gratificando com os altos juros os detentores dos títulos e credores do Estado; uma fração cada vez menor do orçamento público para as políticas sociais, criando mecanismos legais que desviem seus recursos para a esfera financeira; e um esvaziamento do caráter de proteção social enquanto direito histórico históricos frutos de árduas lutas da classe trabalhadora.

 

Os 30 meses de aplicação do ajuste fiscal no Brasil durante o Governo Temer, resultaram em aumento da concentração de renda e desigualdades sociais, desaceleração industrial, aumento da ocupação precarizada, expansão da dívida pública com crescente desordem fiscal, estagnação econômica e desemprego massivo, bem como, ao aprofundamento das desigualdades no país levando o aumento dos casos de criminalidade.  A nova equipe econômica do Governo de Jair Bolsonaro será liderada pelo economista Paulo Guedes e já sinalizou a continuação da implementação de um receituário neoliberal ainda mais agressivo com ataques severos as pautas dos movimentos sociais e de direitos humanos.

 

 O cenário do governo estadual é ainda mais dramático, Wilson Witzel confirmou a extinção da Secretaria de Segurança Pública responsável pela apuração e sistematização de dados sobre violência no Rio e ainda propõe a utilização do mecanismo de ‘excludente de ilicitude’ garantindo aos policiais o assassinato de qualquer pessoa que estiver portando um fuzil, sob o argumento de risco iminente, logo, a necessidade de ser abatido imediatamente. O resultado de uma política de segurança pública que envolve o aumento da militarização da vida, investimentos em armas de fogo e equipamentos que visam o abate e subjugação da população não resultam em índices de criminalidade menores, pelo contrário, garantem aumentos no número de mortes de cidadãos e perpetuação do racismo estrutural e institucional na sociedade. Ao inviabilizar as ações da Secretaria de Segurança Pública, o novo governador impede o desenvolvimento de pesquisas e estudos científicos sobre violência no Rio de Janeiro, considerando que o ISP é o principal órgão responsável pela publicação dos dados de ocorrências e criminalidade no estado. Portanto, as perspectivas para o próximo no ano, seja no campo de segurança pública e nos direitos sociais, não são positivas para classe trabalhadora. Entretanto, haverá resistência e lutas. Conforme alertou Carlos Marighella, a única luta que se perde é aquela que se abandona!

 

O Fórum Grita Baixada visa colocar a superação das violências de Estado e racismo institucional e estrutural como centro do debate sobre segurança pública na Baixada Fluminense, entendendo que o direito à vida precisa ser preservado sob qualquer hipótese. O projeto Direito à Memória e Justiça Racial é a nova frente de ações do Fórum Grita Baixada. Tem como objetivo enfrentar o racismo institucional no campo da Segurança Pública, a partir do fortalecimento da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência do Estado na Baixada Fluminense e da construção de uma Rede de Jovens Comunicadores Negros e/ou Pobres na Baixada. Buscando estimular uma relação entre militância, vivência e técnica acadêmica, afim de fomentar proposições a partir de uma diversidade de epistemologias com novas formas de saberes e conhecimentos gerados a partir da base resultando em um protagonismo da juventude negra da Baixada Fluminense na construção de suas próprias narrativas.

 

[1] Quando uma pessoa: i) mata a outra intencionalmente (dolo direto – quando o autor busca como resultado a morte) ou ii) quando assume o risco de provocar a morte de outras pessoas (dolo indireto – o autor realiza algum evento que, por consequência, mas não por vontade, gera a morte).

[2] Mais conhecidos como autos de resistência que são caracterizados como homicídios cometidos por policiais em situação de confronto.