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Cristini Kemba. Veio há dois anos e hoje mora em Gramacho, Duque de Caxias

 

20 de outubro de 2017

Sobrevivendo com luta e dignidade 

Fórum Grita Baixada entrevista duas refugiadas africanas moradoras de Gramacho, em Duque de Caxias. Histórias de medo e apreensão em suas terras de origem se somam a esperanças por dias melhores no Brasil.  

 

 

Mariza Reis Almeida já havia completado mais de 10 anos de trabalho na Secretaria Municipal de Educação da prefeitura de Duque de Caxias na Baixada Fluminense quando recebeu, enfim, a notícia esperada. A pasta iria contar, a partir desse ano, com um novo departamento chamado DAE (Divisão de Assuntos Especiais). A nomenclatura, um tanto misteriosa, concretizava a decisão do poder executivo local de se montar uma equipe de atendimento para as cerca de 60 famílias de refugiados africanos que, desde o início de 2014, circulavam pelas ruas de Gramacho, bairro distante 15 minutos de trem do centro da cidade de Caxias. 

 

Meses antes, Mariza já tinha conhecimento do fenômeno que começava a se concretizar. Integrante da Sociedade São Vicente de Paulo, uma organização sem fins lucrativos para acolhimento de populações em situação de vulnerabilidade, havia recebido um pedido da Cáritas, entidade não-governamental ligada à Igreja Católica que atua em projetos sociais, entre os quais a acolhida aos refugiados. Fazia-se necessário montar uma comissão na Diocese do município, especialmente para ampliar os trabalhos de acolhimento. “Era um pedido um tanto urgente, pois a Cáritas havia obtido a informação de que as primeiras dez pessoas já teriam desembarcado no Rio de Janeiro em condições de refúgio. E que esse número poderia aumentar”, explica Mariza.

 

O pedido da Cáritas foi apenas mais um que se somou a uma longa contabilidade de vidas humanas que sofrem as consequências de uma guerra civil no Congo que já dura intermináveis 23 anos, considerada um dos maiores holocaustos da história da humanidade. Milícias e grupos rebeldes interessados no contrabando de minérios atacam vilarejos, estupram mulheres. Rica em recursos e belezas naturais, a República Democrática do Congo poderia ser a representação de um paraíso tropical em pleno coração da África, não fosse a cobiça de países vizinhos e empresas internacionais por ouro, diamante, cobalto, cobre, carvão e coltan, minério que contém tântalo, usado na fabricação de componentes eletrônicos presentes em aparelhos de celular, tablets e processadores para computadores, que são contrabandeados para países vizinhos como Ruanda, Uganda e Burundi. Uma série de guerras já deixou cerca de seis milhões de mortos desde 1993.

 

É desse cenário de horror e exploração que fugiu Christine Kamba, de 27 anos. Nascida na cidade de Bandudu, na província de Kenge, diz que Gramacho “parece uma cidade do interior”, entre um sorriso e outro. Ainda desempregada tendo chegado ao Brasil há dois anos, Christine tem 4 filhos, entre eles o pequeno e esperto Emanoel, de um ano e 4 meses. Vivendo de doações para sobreviver com dignidade, já tentou se manter em dois empregos sem muito sucesso. O primeiro, como empregada doméstica, foi na época em que ainda estava grávida do filho caçula. Apesar de salientar que desempenhava com eficiência as tarefas de casa, a patroa a demitiu por motivos que ela ainda hoje não compreende. “Ela simplesmente disse que eu não daria conta porque eu estava aparentando cansaço e tristeza demais, mas eu me esforçava, eu não estava doente”, lamenta.

 

A segunda tentativa foi como balconista na Cobal do Humaitá, em Botafogo, Zona Sul do Rio. Hoje os outros afazeres domésticos se misturam às responsabilidades de mãe. Para amenizar o extenuado expediente, Christine conta com a ajuda do marido, também desempregado, na criação dos filhos. As horas mais aprazíveis são quando aquece o diafragma para cantar louvores gospel em um templo evangélico nas proximidades de uma vila onde mora, perto da escola municipal Rui Barbosa, num dos trechos mais movimentados de Gramacho. 

 

Embora de certa forma livres da opressão que rondava seus cotidianos no Congo, as famílias de refugiados enfrentam diversos obstáculos de adaptação na Baixada Fluminense. Quase a totalidade delas é formada por desempregados, situação que passaram a dividir com a população brasileira, em meio à crise econômica que se abateu sobre o país. Alguns são bem qualificados profissionalmente, mas muitos somente agora estão começando a dominar o idioma português, o que dificulta a contratação, já que o Congo é ex-colônia belga e o francês, junto com outras dezenas de dialetos locais, como o lingala, é a forma de se comunicar do país. “Na nossa primeira reunião de acolhimento na Diocese de Duque de Caxias, tentamos nos comunicar com eles. Só depois de horas é que conseguimos entender que estavam morrendo de fome”, explica Mariza.

 

Falar a língua de Camões, entretanto, não foi dificuldade para outra refugiada. Vinda de Angola, ex-colônia portuguesa e país vizinho da República Democrática do Congo, Dorcas Marta Lituanga, carrega, literalmente, uma grande coincidência. Conhecida de Christine na vila onde habitam (elas preferiram não revelar o endereço do local por questões de segurança) também tem um bebê de um ano e poucos meses chamado Emanoel. Com 21 anos, Dorcas tem uma história semelhante à da congolesa.

 

A Angola tem vastos recursos naturais, como grandes reservas de minerais e de petróleo e, desde 1990, sua economia tem apresentado taxas de crescimento consideráveis. No entanto, os padrões de vida angolanos continuam baixos; cerca de 70% da população vive com menos de seis reais por dia, enquanto as taxas de expectativa de vida e mortalidade infantil no país continuam entre os piores do mundo, além da proeminente desigualdade econômica. Essa foi a motivação principal para Dorcas atravessar o Atlântico.

 

“Morava na capital, Luanda, mas minha mãe não tinha condições financeiras pra nos sustentar. Como conhecia algumas pessoas no Rio de Janeiro, tentei encontrar formas para vir pra cá e consegui”, diz Dorcas. 

 

Comparativamente, pode-se dizer que Dorcas teve mais sorte que Christine. Tinha uma série de vantagens para a concretização de seus planos. Uma delas era a presença de mídias sociais, o que facilitou a comunicação com pessoas que poderiam ajudá-la a sair de Angola. Pergunto por que ela escolheu o Brasil: “Poderia ter escolhido qualquer lugar da Europa, como a França, mas era muito caro e não conheço outros idiomas. Aqui me senti mais tranquila pra recomeçar”, explica. Entretanto, o processo foi se tornando mais espinhoso. Assim como Christine, Dorcas desembarcou no Brasil grávida, completando a terceira coincidência entre ambas. “Descobri quando cheguei aqui. Fui ter meu bebê em um hospital da prefeitura do Rio, lá longe. Estava completamente sozinha”, diz com o olhar perdido e direcionado ao chão.

 

Desprovidas de pátria e vulneráveis financeiramente, elas foram incorporadas ao Bolsa Família, o maior programa de transferência de renda do governo federal. Sobrevivem com apenas R$105 mensais, fora as doações de comida, roupas e moradia providas pela Cáritas. “Temos pouca ajuda do governo. Toda a nossa documentação é provisória. Não temos identidade ou CPF. Eu sei que está difícil até para os brasileiros arranjarem emprego, mas viver nessa situação nos dá mais angústia”, lamenta Christine.

 

Embora com histórias dramáticas e trágicas em suas lembranças, os seus semblantes carregam esperança. Ao fim da entrevista, elas se despedem aos sorrisos, recolhem os filhos pequenos e seguem seus rumos. 

 

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Dorcas Lituanga, de Angola: Veio grávida e teve o filho sozinha em um hospital público