Artigo

4 de dezembro de 2018

A seletividade do sistema de justiça criminal brasileiro

Joel Luiz do Nascimento da Costa, advogado criminal do projeto Direito à Memória e Justiça Racial do Fórum Grita Baixada, morador da favela do Jacarezinho/RJ. Militante do Movimento de Favelas, militando na área dos Direitos Humanos e na luta antirracismo. Pós graduando em “Processo penal e garantias constitucionais” pela ABDCONST, com curso de extensão em criminologia crítica pela Cândido Mendes, atualmente é colaborador da Agência de Notícias das Favelas, onde possui uma coluna às quintas. Sendo ainda membro da REFORMA – Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e da Frente Nacional pelo Desencarceramento.

 

Em um país que viveu 388 anos de escravidão legalizada, onde entre 1500 e 1856, a cada cinco pessoas no mundo que foram escravizadas, uma colocou os pés no Rio de Janeiro, tendo chegado ao litoral brasileiro cerca de 4,8 milhões de pessoas escravizadas, segundo informações do banco de dados criado pela Universidade de Emory, em Atlanta, Estados Unidos, dando ao país o lamentável título de último país ocidental a abolir a escravidão, não é possível falar da seletividade da atuação de suas instituições e seus atores sem fazer o necessário recorte histórico e racial. Toda e qualquer análise ampla no Brasil e do Brasil, seja em questões políticas, sociais ou comportamentais demanda de uma necessária contextualização histórica e uma abordagem racial do tema em questão.

 

Por isso, é impossível tratar da seletividade do sistema de justiça criminal sem falar da escravidão, seus efeitos e suas heranças. Sem abordar o racismo estrutural que norteia, antes e depois de 1888, a atuação do governo brasileiro qualquer análise do tema de justiça criminal incorre no provável erro de não alcançar o cerne do problema, tratar apenas da conseqüência e não da causa.

 

A seletividade da atuação do sistema de justiça criminal se dá a partir da criminalização secundária. Enquanto na criminalização primária, exercida pelos agentes políticos – poder legislativo - ocorre a elaboração das leis, definindo determinada ação ou omissão como crime, em que, em tese, todos estão sujeitos, afinal, a lei é (deveria ser) para todos. Na criminalização secundária temos a efetiva atuação do estado coibindo diretamente a prática desses crimes ou punindo quem o faça.

 

É na criminalização secundária, quando o Estado tem o poder de “escolha” contra quem vai agir que a seletividade aparece. É realmente impossível que o Estado alcance todos os crimes 

 

praticados diariamente no país, por falta de estrutura e também mão de obra a disposição. Ocorre que, vez ou outra também falta interesse. A seletividade mostra sua cara de diversas formas, seja quando o Estado não mostrar interesse em agir contra figuras ditas “importantes”, como por exemplo quando um inquérito contra um político prescreve por ter ficado 12 anos na “gaveta” de algum burocrata do mundo jurídico, seja quando ele direciona todo o seu poder de atuação contra grupos específicos, marginalizados e excluídos social e monetariamente, como faz ao subir os morros com seus caveirões e armas de guerra mesmo sabendo que as drogas são produzidas em outros locais. Ao selecionar contra quem agir, pautado pelo racismo estrutural e desejos do capital, o sistema de justiça criminal se transforma de mecanismo de contenção de delitos em mecanismo de contenção, repressão e controle de grupos raciais, sociais ou geográficos especificamente escolhidos.

 

A partir de enxergar esse redirecionamento de interesses e desejos das instituições de justiça criminal é possível que possamos alcançar o verdadeiro fim de toda a estrutura de justiça criminal repressiva, observando-a como instrumento de controle de corpos dos indesejados, aos quais só é permitida uma cidadania negativa. Uma “massa” que outrora era composta por escravos e hoje compreende populações urbanas marginalizadas, empurradas, histórica e sistematicamente, para espaços longínquos, sem estrutura, saneamento e presença estatal.

 

Cumpre lembrar que, desde sua “primeira versão” no morro da Providência, o surgimento das favelas se dá após uma política de exclusão e abandono por parte do Estado. A Providência nasce do somatório da derrubada das habitações coletivas de baixo custo da época, os famosos cortiços e cabeça de porco, do centro da cidade do Rio atual Avenida Presidente Vargas, com o descumprimento de um acordo feito pelo governo com soldados que lutaram na Batalha de Canudos no Nordeste do país. A esses grupos só é permitido o que Vera Malagutti trabalha em seu livro Difíceis Ganhos Fáceis como “cidadania negativa”, uma cidadania ao avesso pautada pela opressão estatal, como ocorre nas favelas que tem como seu único contato com o Estado na ponta do fuzil de um policial.

 

Isto posto, é necessário abordar os mecanismos legais utilizados historicamente para essa repressão seletiva. Como aqui se trata de um artigo, necessário se faz a objetividade assumindo o risco de ser raso em alguns momentos.

 

O primeiro e maior mecanismo legal já utilizado foi a própria escravidão, que perdurou em terras brasileiras, formal e legalmente, entre 1530, quando o primeiro navio negreiro aportou em nosso país, e 13 de maio de 1888 quando a famosa lei Áurea foi assinada. Vale lembrar que a assinatura da referida lei foi um mero procedimento burocrático atendendo a apelos internacionais para formalizar o que já vinha se construindo ao longo de muitos anos, sendo também estratégia para trazer o branco para o centro do processo abolicionista excluindo a luta do povo negro. Pois, o processo de abolição demandou de anos e anos de lutas, sobretudo dos povos do Nordeste que sempre foram figuras que estiveram na vanguarda da resistência e também da ação de vários negros abolicionistas livres ou escravizados, entre eles Castro Alves, André Rebouças, Francisco de Paula Brito, Luís Gama, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio. Mecanismo do qual sentimos efeitos até hoje, por óbvio, vivemos em um país com um racismo estrutural e que também gestou os demais.

 

No período pós abolição foi necessário a criação de novos mecanismos legais para controle desse numeroso grupo, agora liberto, porém ainda e mais do que nunca indesejado, enquanto pessoas brancas vindas da Europa eram trazidas para clarear a população, em um processo de eugenia. Segundo um estudo baseada em banco de dados criado pela Universidade de Emory, nos Estados Unidos o Rio de Janeiro recebeu 2 milhões de negros escravizados, logo essa enorme população negra precisava ser “controlada” sob o risco de revoltas.  Em 1941 foi editada a lei da “Vadiagem” o decreto-lei n° 3.688, que dizia que: “entregar-se habitualmente a ociosidade sem ter renda tendo condições de trabalhar” era contravenção penal com prisão de 15 dias a 3 meses.

 

Na verdade, a prisão por vadiagem é anterior a data, já tendo sido estabelecida nas ordenações filipinas, onde se encontra no título “Dos Vadios”, ela também consta no código penal do Império de 1830, também eram punidas as condutas de mendicância e embriaguez. Vale se atentar para dois fatos, primeiro que as condutas criminalizadas direcionavam a atuação do Estado contra grupos específicos, em um claro movimento de higienização social, segundo o recorte econômico da lei de 1941, ao abordar a parte “sem ter renda tendo condições de trabalhar”, deixa claro que a lei é direcionada aos pobre despossuídos de renda, que naquele momento – e ainda hoje – seria a população negra, na época recém saída da escravidão.

 

A própria lei de vadiagem era utilizada, no processo de seleção da criminalização secundária, para alcançar outras práticas novamente características do povo negro, que foi o samba, a capoeira e as religiões de matriz africana. Quem era visto nas ruas empunhando um instrumento musical vestido como sambista ou como “capoeira” poderia ser levado à cadeia sob o argumento da vadiagem.

 

Com a implementação da política global de combate ao comércio e consumo de drogas, muito pautada por um viés de preconceito e perseguição a determinados grupos específicos, o Brasil reestruturou seus mecanismos jurídicos de controle do povo negro. Vale lembrar que, nos Estados Unidos, por exemplo, o combate ao comércio e consumo de algumas drogas estava diretamente ligada ao controle e opressão de alguns imigrantes que lá existiam, o ópio era associado aos chineses que chegaram nos Estados Unidos para trabalhar na construção das grandes ferrovias, a maconha aos mexicanos acusados de ultrapassar as fronteiras ilegalmente e a cocaínas aos negros, acusados de serem criminosos, violentos e até do estupros contra mulheres brancas entre outros crimes. Como podemos perceber, já no norte da América o combate ao consumo era desculpa para perseguir grupos específicos, não tendo sido diferente no Brasil pós abolição.

 

A atual lei de drogas, data de 26/08/2006 foi inicialmente vendida como a solução para o problema dos crimes relacionado a porte, consumo e comércio de drogas em território nacional, pois trazia pela primeira vez a distinção entre usuário e traficante, em tese, ela impediria o grande encarceramento de pequenos usuários pois estes tiveram suas penas abrandadas enquanto a de tráfico teve um aumento. Entretanto, 12 anos depois, é evidente que a lei de drogas vigente no ordenamento jurídico nacional foi um verdadeiro cavalo de tróia. Vendida como desafogo do sistema criminal e prisional, no período entre 2005 e 2016 a população carcerária do país dobrou, indo de 361,4 mil presos para 726,7 mil. Destas aproximadamente 177 mil pessoas estavam presas por tráfico de drogas e 20 mil por associação ao tráfico.

 

O ponto chave dessa questão é o texto do artigo que faz a distinção entre usuário e traficante, o artigo 28, §2° que diz: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Ultrapassado todo o contexto histórico fica mais fácil para que possamos analisar o ponto focal desse debate sobre a seletividade, como podemos encarar como medida de efetiva justiça termos, em um país que se moldou em cima de um sistema escravocrata e convive com seu racismo estrutural e estruturante diariamente, critérios tão subjetivos para que o judiciário – branco, elitizado, encastelado – decida se uma pessoa é um usuário com conduta despenalizada ou um traficante que pode ser condenado a uma pena de 5 a 15 anos de prisão. Na nossa compreensão, dado todo o histórico de racismo e preconceitos estruturante da sociedade brasileira é nesse crime de fácil acusação e com critérios de diferenciação subjetivos que reside o cheque em branco que as policias, o ministério público e magistratura possuem e usam para encarcerar seletivamente o povo negro, que compõe 2/3 da população prisional enquanto é 53% da população nacional. Enquanto no Rio de Janeiro 72% dos presos são negros.

 

Além da abordagem histórica e da análise jurídica do artigo 28 da lei de drogas, dados das sentenças criminais vinculadas ao crime de tráfico na cidade do Rio de Janeiro, entre os anos de 2015 e 2016, materializam o quanto a lei de drogas é utilizada seletivamente como mecanismo de contenção e perseguição a grupos e regiões específicas. Segundo pesquisa realizada pela Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro, no período acima abordado tivemos na região central da cidade 563 sentenças criminais em que mencionavam bairros ou favelas da Zona Norte da cidade como local de ocorrência do delito de tráfico em seu textos, enquanto, no mesmo período na Zona Sul da cidade tivemos apenas 75 menções a bairros ou favelas em textos de sentenças.

 

Para além da distância entre os números é interessante abordar que, segundo os dados mais atuais a Zona Norte da cidade possui em torno de 1.2 milhão de habitantes, pouco menos que o dobro da Zona Sul, pois está possui em torno de 700 mil habitantes. O que devemos atentar é que, a Zona Norte tendo o dobro de população possui 7 (sete) vezes mais incidências de condenações por tráficos em seus locais que a Zona Sul. A discrepância é gigante e nos faz pensar, não há tráfico na Zona Sul, área reconhecidamente nobre, ou não há perseguição e criminalização de seus moradores como ocorre na Zona Norte, sabida área de periferia e subúrbio, onde o povo negro, pobre e marginalizado se estabeleceu em maioria.

 

Resta evidente que, historicamente o governo brasileiro tem buscado no direito penal e no seu seletivo controle de justiça criminal, mecanismos legais, porém injustos, de controle dos corpos negros, pobres e favelados. As leis constituídas e as estruturas de organização e atuação do aparelho jurídico do Estado são ferramenta de segregação em massa, é forma de perpetuação do apartheid iniciado na escravidão e que até os dias de hoje o Rio de Janeiro segue vivenciando.