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10 de abril de 2018

A Baixada em frente ao espelho

Lançamento da publicação “Cartografia Social: O impacto da militarização na vida das mulheres da Baixada Fluminense”, possibilita que ferramenta seja disseminada para mapear áreas e agentes violentos, além de se tornar referência metodológica a ser usada em movimentos sociais da região.  

 

A biblioteca do Centro Cultural Sylvio Monteiro de Nova Iguaçu abrigou, na noite do dia 28 de março, o lançamento de uma publicação coletiva que reuniu algumas das mais simbólicas representações femininas da Baixada Fluminense. Elas foram responsáveis pela feitura de “Cartografia Social: O impacto da militarização na vida das mulheres da Baixada Fluminense”, um processo metodológico de pesquisa, mas também uma ferramenta de incidência política, capaz de unir mulheres de contextos sociais distintos, mas moradoras de territórios com realidades e problemas similares. Concebido graças ao projeto “Mães e Familiares Vítimas da Violência Policial na Linha de Frente”, uma proposta do Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu, em parceria com a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada e o Fórum Grita Baixada, além de apoio e financiamento da Fundação Heinrich Boll Stiftung 

 

Mas o que seria uma cartografia social? Seria “um saber não-acadêmico refletido em dados auto-gerados, mapas de vivências, trocas, pertencimento e afetos”, como bem escreveu Marcelle Decothé, representante da Anistia Internacional Brasil e umas das coordenadoras da metodologia cartográfica, em artigo publicado no site do Fórum Grita Baixada, em dezembro do ano passado, explicando o conceito. Visto de outra forma, a funcionalidade de uma cartografia social pode ser interpretada pelo seguinte ângulo. Imagine que você more em uma localidade periférica, conhecida por possuir altos índices de violência e desprovida de uma estrutura social adequada (equipamentos públicos) como áreas de lazer, escolas, bibliotecas, hospitais, etc. Conhece a origem, as consequências e os mecanismos de perpetuação desses problemas comunitários. Sabe exatamente em que ponto de determinado território eles ocorrem. Em vez de fornecer apenas informações técnicas, a construção desses mapas sociais se dá de forma participativa e apresentam o cotidiano de uma comunidade. Neles, são inseridos os elementos que as populações envolvidas julgam importantes destacar e discutir em grupo, preferencialmente.

 

Nessa perspectiva, os territórios das comunidades acabam sedo direcionados para discussões  acerca sobre as relações de poder, de presenças específicas do poder público, de controle sócio-político ou algum processo hegemônico em andamento ou conhecidamente histórico. De posse dessas informações cartográficas, inicia-se o processo de diagnóstico da comunidade. Na sequência, são feitas reflexões acerca dos desejos em relação ao futuro de seu território. Que podem, inclusive, se transformar em políticas públicas de fato. No caso de cartografia social elaborada nessa publicação, o resultado final evidenciou, através de ilustrações e narrativas, fenômenos sociais ligados ao racismo, machismo e à lógica bélica da violência que constituem a ausência da garantia de direitos por parte do Estado nos territórios da Baixada Fluminense.

 

Autoras e coordenação falam sobre suas experiências e contribuições na elaboração da cartografia

 

Durante a noite de autógrafos, Sheila Macedo, moradora de Nova Iguaçu, disse que a metodologia “lhe deu base e experiência para vivenciar as realidades que rondam nossas periferias”. “Essa ferramenta é um processo que pode ajudar no desenvolvimento e transformação humana de nossa cidade. É importante ter uma convivência mais complexa acerca dos problemas do bairro onde moramos”, disse Sheila.  

 

Bárbara Lucas, que até o final do mês passado, coordenava o Projeto Litigância Estratégica, do Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu, e que teve grande importância no processo de aticulação com as autoras, disse que “embora os municípios da Baixada Fluminense sejam diferentes em termos territoriais, eles são iguais em relação as suas realidades”. “A cartografia permitiu uma imensa troca de informações e, para além dessa troca, temos que ser multiplicadores dessa ferramenta”, afirmou Bárbara.  

 

Rafaela Albergaria, pesquisadora do ISER, fez um dos discursos mais enfáticos da noite. “Apresentar essa publicação, é estar acima da academia branca, machista e elitista. Fornecemos com isso, uma  narrativa contra-hegemônica de várias formas e que não deixa a desejar a qualquer pesquisa. Nós não estamos e nem devemos ficar sozinhas. Juntas resultamos em uma soma, mas separadas seremos apenas uma possibilidade de sermos exterminadas em conjunto”, afirmou Rafaela.   

 

A ativista e militante Luciene Silva, cujo filho foi assassinado na Chacina da Baixada em 2005, ressaltou as diversidades da Baixada Fluminense, algumas delas nem sempre tão dignas de reconhecimento e que precisam ser urgentemente combatidas.“A Baixada Fluminense tem uma série de diversidades. Diversidade de atores, afetos, de ativismos e militância. Mas também nos choca a diversidade de violências que sofremos. O problema é que essas violências recaem sobre as mesmas pessoas: as mulheres, jovens e homens pretos e pobres. Só precisamos impedir que elas piorem.”, disse Luciene.

 

A articuladora de territórios do Fórum Grita Baixada, Lorene Maia, afirmou que a conclusão da cartografia não se encerra meramente com a publicação do estudo. “A luta não termina aqui. Esse é olhar de uma pequena parcela da Baixada Fluminense representada aqui enquanto mulheres, mães e jovens que somos. Que outras narrativas possam ser colocadas em disputa. O conteúdo dessa publicação não é apenas o resultado da história do patriarcado, da história oficial. É a história de um povo universalizado”, afirmou.    

 

A noite de autógrafos também contou com a presença do subsecretário de cultura da prefeitura de Nova Iguaçu, Hermes “Miminho” Teixeira, que se mostrou entusiasmado com os resultados do projeto. “Fico contente com a presença de cada um de vocês aqui, pois o esforço que vocês empregaram foi legítimo. O que vocês fizeram é primordial. A luta de vocês não deixa de ser uma aula para mim. É muito importante que esses grupos de luta se mantenham sempre unidos.”, disse o subsecretário.  

 

 Já o assessor político do Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu, Fransérgio Goulart, que também coordenou a elaboração da cartografia social, disse que o resultado final desse processo fortalece o protagonismo dessas mulheres: “Essa publicação é um lugar de fala. São elas que determinam o que deve ser visto e dito sobre esses territórios.”, disse Goulart, que também ressaltou o duro trabalho de ativistas e militantes da Baixada Fluminense. “Temos de constituir uma rede de proteção, organizar formas de constituir protocolos de segurança inclusive nos territórios onde atuamos”. Perguntado sobre os próximos passos de todo esse processo, Goulart disse que pensa em expandir esse conhecimento. “A ideia é que os movimentos sociais da Baixada tenham acesso não apenas a publicação, mas que a ferramenta de construção de incidência política baseada na cartografia social possa ser partilhada e oportunizada em outros grupos de articulação.”

 

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