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5 de agosto de 2020

Terreno sagrado do candomblé em Duque de Caxias deve ser revitalizado após tombamento.

Derrota da prefeitura se deveu a mobilização religiosa e popular. Desistência em destruir propriedade que pertenceu ao babalorixá Joãozinho da Gomeia para a construção de uma creche expõe crise na educação infantil no município.

 

Após sofrer um recuo devido à forte pressão popular, de praticantes das religiões de matriz africana, de movimentos, organizações e demais instituições na promoção dos Direitos Humanos, dentre elas Fórum Grita Baixada, a prefeitura de Duque de Caxias teve de ceder à intervenção de autoridades como o Ministério Público Federal e Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. O poder executivo local desistiu de destruir o que restava do antigo terreiro do babalorixá Joãozinho da Gomeia. Em seu lugar seria construída uma creche que já tinha até nome de batismo, “Pequeno Guerreiro”, cujo nome é uma referência a passagem bíblica de David e Golias. Porém, o espaço educacional que seria construído à revelia na Vila Leopoldina, periferia da cidade, sequer sairá do papel. Graças a uma determinação fundamentada no valor histórico e arqueológico do lugar.

 

No sábado, 18 de julho, mais de 50 representações da sociedade civil deram um abraço simbólico no terreiro de Joãozinho da Gomeia como forma de protesto em relação a decisão do prefeito. O grupo obedeceu às normas de segurança determinadas pela Organização Mundial da Saúde em função da pandemia do novo coronavírus. Uma semana depois, a prefeitura de Duque de Caxias informou que pretende “preservar o terreiro” e realizar manutenção, limpeza e cercamento no local, como recomendado pela Defensoria, e que resolveu alterar o endereço para construção da nova unidade escolar.

 

“Essas perseguições às religiões de matriz africana são um movimento encabeçado por pseudo- religiosos cristãos evangélicos neopentecostais que se intitulam “exército de Jesus” e contam com facções criminosas e grupos paramilitares como seus apoiadores. São violentos ataques que ocorrem em toda a Baixada Fluminense. Por isso, é importante revitalizar o terreiro de Joãozinho da Gomeia para que seja preservado o seu legado. Esse discurso benevolente é uma hipocrisia porque a própria prefeitura contribuiu pra esse abandono que hoje se encontra o local. Ela nunca se interessou em promover qualquer ação social ou cultural ali”, diz a Yalorixá Mãe Conceição D`lissá, cujo terreiro sofreu, recentemente, um ataque de origem racista religioso.  

 

De 50 creches prometidas, 5 estão em construção

A tentativa de Washington Reis em se apossar do terreiro da Gomeia se transformou num tremendo tiro pela culatra, expondo o quanto o histórico de sua gestão na educação pública de Duque de Caxias é deficitária. Evangélico e apoiador da ala bolsonarista em Brasília, o governo de “WR”, como é conhecido na região, é marcado por problemas, polêmicas e falsas promessas. Na campanha eleitoral que o elegeu, prometeu a construção e funcionamento de 50 creches. Ao assumir, assinou o Plano Plurianual da prefeitura, relativo ao quadriênio de 2018-2021, que previa a construção de apenas 20 delas, cinco para cada ano de mandato, portanto trinta a menos que o combinado e ao custo de R$ 52 milhões em seu total. O decréscimo foi seguindo ladeira abaixo e, hoje, estão em construção, de fato, apenas cinco unidades educacionais infantis. Pra piorar a situação, a prefeitura não gastou um centavo do próprio orçamento. Todo o recurso veio do Governo Federal há 4 anos, quando Dilma Roussef era a presidenta da República.

 

“É preciso salientar que tudo isso é uma afronta. Pois gostaria muito de saber se fossem as ruínas de uma sinagoga ou de uma igreja, se haveria essa sucessão de irregularidades. Mas como é o espaço sagrado de uma religião de matriz africana, aí perde-se a importância do local. Nós defendemos a existência de creches em toda a cidade. Mas que haja uma discussão com o Conselho de Educação,   professores, pais e comunidade. O bairro do Pantanal, por exemplo, tem 60 mil moradores e nenhuma creche.”, afirma Marroni Alves, professor e coordenador local da UNEAFRO (União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora), organização que pauta poderes públicos, universidades, empresas privadas e setor educacional para a proposição de ações afirmativas, viabilizando cotas para negros, indígenas e pobres nesses espaços.   

 

Se na educação pública há restrições de sobra, há benevolências em excesso com o setor privado. Em 6 de julho, escolas e creches particulares do município de Duque de Caxias foram autorizadas, mediante decreto da Prefeitura, a retomar suas aulas do ensino infantil, sem ao menos apresentar um plano de segurança sanitária convincente que garantisse a saúde de alunos, professores e demais funcionários da rede privada de ensino em função da pandemia da COVID-19. Menos de 48 horas depois, a Justiça suspendeu o decreto que autorizava o retorno às aulas. Em nota, a prefeitura havia informado que o mesmo permitia o retorno das atividades educacionais nas escolas particulares de forma facultativa, cabendo a decisão de reabrir ou não à direção de cada escola.

 

Aliás, a pandemia do novo coronavírus e as medidas de isolamento social trouxeram ainda mais um complicador: o ensino à distância da rede pública municipal. Centenas de alunas e alunos que moram em regiões vulnerabilizadas pela pobreza, no município de Duque de Caxias, relatam ser incapazes de utilizar a internet para fins pedagógicos devido a problemas de instabilidade na velocidade de conexão, impossibilitando acesso ao conteúdo educacional. Isso quando as famílias têm a sorte grande de poderem contar com um computador doméstico ou de ter alguma lan house nas proximidades.   

 

Para se ter uma ideia do quão problemática é essa situação, a incapacidade de atendimento de uma internet inacessível não se restringe apenas às crianças, estendendo-se às mães de alunas e alunos.  No início de fevereiro desse ano, Fórum Grita Baixada acompanhou manifestação com cerca de 12 mães na entrada da Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias. Atendidas por uma das organizações parceiras do FGB, a Central Humana de Educação, Ideias e Formação Alternativa (CHEIFA), que ajudou a fomentar a denúncia, essas mulheres pediam transparência para o poder municipal em razão de um problema histórico: a falta de informação e divulgação adequadas sobre o quantitativo de vagas disponíveis nas creches da prefeitura, que utiliza como critério o sorteio. A única forma de consulta sobre o número de vagas que, no ano passado, totalizaram apenas 20 (sendo 7 destinadas para crianças especiais) era pelo site da Secretaria Municipal de Educação (SME). Como era de se imaginar, o acesso a essas informações era precarizada em função de problemas técnicos na página virtual que sequer disponibilizava a atualização das referidas vagas. Localidades pobres como Jardim Gramacho, Jardim Primavera, Imbariê, Pantanal, Sarapuí e tantas outras distribuídas nos 4 distritos do município, sofrem com a escassez de vagas e com uma conexão com a internet que não existe.

 

“A educação infantil não foi implementada de forma adequada por este município, no que se refere ao primeiro ciclo escolar na alfabetização. Há uma defasagem no número de creches, consideradas insuficientes para a população de baixa renda.  Muitas mães ficam sem opção de garantir este direito para seus filhos e filhas, pois a maioria delas os criam sozinhas. São mulheres que tiveram que arcar, ainda, com a irresponsabilidade machista dos companheiros que, simplesmente, desapareceram”, explicou Maria de Fátima da Silva, coordenadora da CHEIFA.   

 

Luciene Ribeiro é moradora de Jardim Gramacho. Ela afirma que, por falta de condições financeiras, pegar duas, três condições só multiplica as dificuldades de quem precisa se deslocar por quase 3 horas apenas para saber uma informação que deveria ser democratizada pelo poder público.

 

“Eu ainda tenho essa sorte de ter esse dinheiro, mas conheço várias mães que estão desempregadas, passando fome, que moram em Xerém, Campos Elíseos, bairros muito distantes da secretaria municipal de educação”, revolta-se Luciene.

 

A assessora de comunicação da SME de Duque de Caxias, Aleksandra Rosa, disse que para sanar o problema, sempre são disponibilizadas viaturas que são enviadas a esses locais mais longínquos. Para manter informada a população local são distribuídos, de tempos em tempos, panfletos explicativos sobre outras formas de se comunicar com a Secretaria.  

 

Mate com Angu

A cereja do bolo de todo esse descaso com a educação de Duque de Caxias é o completo abandono da centenária Escola Municipal Doutor Álvaro Alberto, que só se mantém de pé em função de um tombamento, uma pedra no caminho na construção de um shopping em seu lugar. Considerada a primeira escola da Baixada Fluminense, construída em 1921, foi a primeira unidade de ensino da América Latina a ter ensino em tempo integral e a servir merenda, inovações para a época. Por ser uma escola destinada aos filhos e filhas da classe operária do início do século XX, o cardápio corriqueiramente servido aos alunos e alunas se consistia em uma bebida à base de chá de erva-mate com polenta, o famoso “mate com angú”. A iguaria batizou até o nome de um centro audiovisual, a “Mate com Angú”, do produtor cultural local Heraldo HB.

 

- “A maior parte das merendas era servida apenas com isso, pois eram os itens mais doados pela classe burguesa da época. O chá mate e o fubá pra fazer o angú”, explica Vanusa Rodrigues da Silva, mestre pela Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que chegou a organizar três saraus objetivando levantar fundos para a preservação da Escola Doutor Álvaro Alberto e lembra que a unidade de ensino já sofreu dois roubos em plena pandemia.  

 

A escola nasceu das inquietações da educadora Armanda Álvaro Alberto, filha do dr. Alberto, que, na década de 1930, era presidente da Associação Brasileira de Educação (ABE), fundando mais tarde a União Feminina do Brasil (UFB), da qual foi a primeira presidente, defendendo uma união entre “mulheres educadoras, intelectuais e trabalhadoras”.

 

Marroni Alves, da EDUCAFRO, encontra tempo para recompor o fôlego, pois vem aí uma quinta denúncia na falida educação pública de Duque de Caxias.  No Parque Equitativa, terceiro distrito de Duque de Caxias, há a Escola Municipal Santa Luzia, uma das pouquíssimas habilitadas para o ensino especial, incluindo libras (a linguagem de comunicação em forma de gestos com as mãos utilizada pelos portadores de deficiência auditiva ou vocal). Também caindo aos pedaços e vítima de um incêndio recente, o prefeito Washington Reis alega não ter condições de repassar um centavo para a unidade de ensino.  

 

- "O prefeito diz que não tem condições de doar nem uma impressora. A escola teve de fazer vaquinha, em papel mesmo, pra não suspender suas atividades de vez, assim que acabar a pandemia. Mas o que esperar de alguém que atrasa os salários dos professores e os chama de vagabundos. Nosso debate vai muito mais além do que apenas escolher um novo local para uma creche que não seja em solo sagrado de matriz africana", indigna-se Alves.