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04 de maio de 2023 

Reportagem especial 
Violências em Belford Roxo parte 2: origens e milícias 
Segunda e última parte de reportagem produzida pelo FGB sobre os desafios de um território e suas modalidades de violência. Trataremos da evolução dos processos criminais, que inclui traficantes e grupos de extermínio até a chegada de grupos milicianos. Uma vez mais, por uma questão de proteção, os moradores e moradoras entrevistados ficarão sob anonimato.

 

Para acessar a Parte 1: racismo religioso, narcopentecostalismo e poder público


Dona Joana (nome fictício), mora há 20 anos no bairro Nova Aurora, localizado entre as comunidades Shangri-lá e Itaipú. Já escutou muitos tiroteios, viu alguns corpos e reclama que toda a hora precisa de autorização pra sair de onde mora.  A obrigação em dar satisfação sobre o itinerário dos moradores é uma rotina mais recorrente em relação aos “meninos do tráfico”, como ela chama. Na verdade, duas organizações criminosas atuam no bairro, a saber: o comércio varejista de drogas e as ações criminosas da milícia local. Assim, como acontece em algumas cidades da Baixada Fluminense, são estabelecidos acordos territoriais bem protocolados entre os grupos.


- “Dias desses os traficantes fizeram uma festa de ‘integração da comunidade’, ali perto onde era o Curral. Tem festa também perto da Vila Maia, perto do Brizolão. Não pode chegar tarde da noite. Dez horas, as ruas estão todas desertas. Qualquer casa que fica vazia, eles invadem e tomam conta. A única coisa que circula ali são os mototáxis pra levar os viciados nas festas”, explica dona Joana. 


As festas podem acontecer em qualquer dia e horário e os motivos, variados. Pode ser aniversário de um aliado pertencente a uma das facções, a comemoração de metas alcançadas pela demanda cada vez mais crescente por drogas ou a notícia de que um grande carregamento de entorpecentes ou armas venha pelos próximos dias. Ou simplesmente porque decidiram fazer uma.  


Munícipio que completou 33 anos de emancipação, no último 3 de abril, Belford Roxo carrega uma triste sina na sua história. Há anos, num passado que compreendeu o final da década de 1970 e meados da década de 1980, o território ostentou títulos pouco beneméritos, como a “cidade mais violenta”, ou “ a mais perigosa do mundo”. Graças ao acúmulo de processos de construção da pobreza que a constituem como cidade periférica, longe da capital, mas perto de tudo que a faz ser um dos munícipios com os menores índices de desenvolvimento humano da Baixada Fluminense, onde falta educação, transporte, saúde, lazer, saneamento básico e tudo o que configura a percepção de pertencimento a uma cidadania pretendida. É necessária, portanto, a compreensão sobre as origens das violências e modelos de criminalidade, resultados diretos e históricos do descaso dos poderes públicos.  


O fantasma da beligerância foi novamente a ordem do dia quando o prefeito de Belford Roxo, Wagner dos Santos Carneiro, o Waguinho (Republicanos), se reuniu na última segunda-feira (17/04) com seus secretários para debater o mais recente e midiático episódio de insegurança na região. Durante a reunião, um ofício foi formalizado para ser entregue ao governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL) e ao ministro da Justiça, Flávio Dino, solicitando reforço das forças policiais no município. Dentre as questões abordadas, o prefeito repudiou veementemente a mais recente chacina, ocorrida três dias antes, no bairro Areia Branca, amplamente veiculado pelos telejornais e que deixou cinco vítimas, entre mortos e baleados, no condomínio Doce Lar Conquista. O ataque seria mais um episódio no histórico de confrontos entre duas facções rivais. 


Mesmo com a expansão territorial de facções criminosas em mais de 12 bairros na cidade, como afirma a prefeitura de Belford Roxo, o fato, a repercussão e as providências urgentes solicitadas por Waguinho chamam atenção pelas sutilezas que se aproximam do alarmismo seletivo quando se trata de localidades economicamente menos vulnerabilizadas. Independente da classe social de suas vítimas (entre elas, há um porteiro assassinado), o condomínio Doce Lar Conquista é um conjunto de imóveis de alto padrão. Seus moradores usufruem de piscina, quadra poliesportiva, churrasqueira, elevador, espaço gourmet, bicicletário, acesso para cadeirantes e outras deficiências de mobilidade, além de academia de ginástica.  


Entretanto, o prefeito Waguinho ficou em silêncio quando, em 12 de janeiro de 2021, uma outra chacina deixou oito pessoas mortas no Complexo do Roseiral, novamente por causa de disputa territorial entre traficantes de facções rivais, abafada por uma operação policial que durou quase uma semana. Duas delas, abatidas mediante execução sumária impetrada pelos agentes de segurança do Estado, foram apontadas, mesmo sem provas, como tendo ligações com a criminalidade, segundo investigações inconclusivas na época. Informações não confirmadas por moradores diziam que o número de mortos poderia ser mais de 20 e que PM´s os teriam obrigado a carregar os cadáveres, colocá-los em carroças e enterrarem em valas comuns clandestinas. Operações similares, sempre muito violentas, se repetiram em outros bairros do município.     


Por violenta (ou violentada), Bel, como é carinhosamente conhecida por seus moradores, é um leque de variações no que diz respeito às tipologias violentas. São violências de Estado, político-eleitorais, motivadas pelo racismo religioso ou pelo crime organizado. Tudo isso atrelado à herança perversa da ditadura civil-militar e judiciária que atravessou as linhas do tempo e que se ramificam até hoje. No meio desse turbilhão, emerge um dos principais suspeitos dessa chaga: o poder público, por “ausente” em algumas circunstâncias e “presente” em outras. 


Belford Roxo, assim como boa parte das cidades da Baixada Fluminense, é uma cidade cuja reputação é atingida cotidianamente pelos números. Sobre tentativas de feminicídio, por exemplo, dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), revelaram, em levantamento divulgado em março desse ano, que o município teria triplicado os registros desse tipo de crime em comparação com 2022. Foram registradas dez tentativas de feminicídio, em 2022, contra apenas uma em 2021, segundo o Instituto.  


Assim como levantamento feito pela plataforma Fogo Cruzado aponta que, em 2019, 7.365 disparos de arma de fogo foram registrados na Região Metropolitana do Rio, dos quais 1.647 deles na Baixada Fluminense. Belford Roxo liderou o número de tiroteios, com 544 registros em 2019, 33% do total da Baixada. Os dados do Fogo Cruzado mostram que, de um total de 13 municípios da Baixada, Belford Roxo foi o que mais teve tiroteios, além de feridos e mortos nessas ocorrências. Pelo menos uma troca de tiros por dia foi registrada. Agentes do estado estariam presentes em pelo menos 111 casos. 


O que explica o acúmulo de tantas formas de violência?
A Baixada Fluminense foi um laboratório de aperfeiçoamento da violência que data desde a época do trabalho escravo no período colonial, da cultura da laranja e especialmente com a ditadura civil-militar (1964-1985) e que ajudou, inclusive, a acobertar uma série de ilegalidades. Interferências políticas nas gestões municipais não eram raras. Prefeitos resistentes ao regime perderam os mandatos e eram substituídos por interventores ligados à repressão (“prefeitos biônicos”). Diversos vereadores foram cassados, através de denúncias de irregularidades nem sempre comprovadas. Com o passar do tempo, foram surgindo justiceiros formados por agentes públicos que, atrelados a imposição da lei do silêncio, foram criando grupos de extermínio. Num regime de exceção, foi uma combinação perfeita que se perpetua até os dias de hoje. A partir daí, prefeitos, secretários municipais e vereadores das cidades da Baixada foram criando vínculos direitos e indiretos com matadores, justiceiros, grupos de extermínio e, por fim, milícias.

 

As articulações para se estruturar estratégias de “limpeza da bandidagem” se não ganhavam amplo apoio da população, também poucas vezes encontravam resistência fora do espaço institucional da Igreja Católica. Dom Adriano Hypolito (Bispo de Nova Iguaçu durante 1966 a 1994) denunciava textualmente e nas homilias, a violência, tanto da elite política e econômica, quanto explicitamente, dos esquadrões da morte e de suas relações com as forças policiais. No texto “Páscoa e Baixada Fluminense”, publicada no Boletim Diocesano de abril de 1972, Dom Adriano comenta que “o povo tem medo da ação arbitrária da polícia, das violências, dos maus tratos de homens primários que pertencem aos quadros policiais, mas poderiam estar também participando de gangs de marginais; é também inegável, infelizmente, que o povo não confia na honestidade da polícia, aceitando sem dificuldade que os policiais são aliados dos criminosos”.


- “O importante sempre foi matar traficante e viciado. Mas isso só pode ser feito na favela. Se você colocar um monte de corpo de bandido com cabeça estourada de fuzil no Centro da cidade, fica pesado de ver. Assusta os eleitores. Mas (as mortes em comunidades) sempre foi assim”, conta, de forma sarcástica, “seu Luiz (nome fictício)”, nascido no Ceará, mas cidadão belforroxense há 40 anos, como gosta de dizer.   


Um exemplo dessa tradição de proximidade entre o poder público de Belford Roxo com as ilegalidades e as violências urbana e de Estado, vem pouco depois da emancipação do munícipio, em 1990, desvinculando-o como distrito de Nova Iguaçu. O primeiro prefeito era suspeito de participar e fornecer apoio a grupos criminosos armados, além de ter sido acusado de receptação de produtos roubados. Eleito com mais de 76 mil votos em 1992, Jorge Júlio da Costa Santos, o “Joca”, tinha grande apoio popular. Na época, ele  despontava como um dos principais políticos da Baixada Fluminense, mas veio a ser morto em 20 de junho de 1995, em um suposto assalto na cidade do Rio de Janeiro, quando estava a caminho de reunião com o então governador Marcelo Alencar. Truculento, esbofeteava desafetos políticos em público e participava de ataques armados às residências de vereadores discordantes de suas ideias.  


O professor de sociologia José Cláudio Sousa Alves, autor do livro “Dos Barões ao Extermínio, uma História de Violência na Baixada” e estudioso sobre as origens e o desenvolvimento de grupos milicianos há quase 30 anos, reforça a tese de que o estilo personalista de governo do ex-prefeito, incluindo o relacionamento que possuía com aliados e inimigos, possui características muito peculiares que o aproximam dessas facções armadas. 


-“Joca está na pré-história dos grupos milicianos. Ele tinha relação direta com roubos de cargas de medicamentos e vendia para o comércio de Belford Roxo, graças a uma aliança que ele tinha com o Jorginho da Farmácia. Ele se consolida como vereador e liderança política na cidade, além de ter uma relação de extrema agressividade com os que não pertenciam ao seu grupo ou os que ameaçavam a sua estrutura de poder. Essa relação passa por linguagens, modos de agir, de percursos que ele fez dentro da própria cidade através de coerções, coações e punições. Não é apenas a violência em si. Existe uma dimensão populista, em vários prefeitos na história da Baixada, de construção de uma imagem de benfeitores para a população, que protegem os mais pobres, que posam de paladino ou justiceiro. Como resultado, há um consenso de legitimidade entre os moradores, apesar das ilegalidades. Qualquer coisa que diminua todas essas estratégias de ganho político, vai ser fatal para seus opositores”, explica Alves. 


Jorginho da Farmácia fazia parte de um grupo de extermínio em que participavam ele, “Djalminha” “Cosminho”, “Saul” e “Do Boi”. O grupo foi preso em 1989, acusado de ter cometido uma chacina no bairro Shangri-lá, mas nunca foi condenado. Os suspeitos foram postos em liberdade por “falta de provas”.   

 

Há duas versões para o número de tiros que mataram Joca: uma, publicada pela Folha de São Paulo, de que ele teria sido alvejado com 11 tiros e uma outra, pelo Jornal do Brasil, com cinco. Teria reagido ao assalto ao sacar uma pistola alemã Glock, naquela época conhecida pela discrição e acessibilidade, por ser revestida de um polímero de plástico que, dizia-se na época, poderia driblar a ação de detectores de metais. Era de se imaginar que queria estar armado o tempo todo e em qualquer lugar em função do grande número de inimigos que colecionou na vida pública. 


Quase tão mítico quanto o sanguinário Tenório Cavalcanti (1906-1987), que construiu uma dinastia política em Duque de Caxias, a morte de Joca virou matéria-prima para algumas teorias de conspiração, todas elas mencionadas no livro “Andando no Vale da Sombra da Morte: colonização proletária da Baixada Fluminense, Belford Roxo e o governo Joca”, do historiador Linderval Monteiro, lançado em 2021. As mais polêmicas seriam que sua morte seria encomendada pelo próprio Marcelo Alencar, por temer a velocidade de sua popularidade na Baixada Fluminense, ou teria o envolvimento de sua então mulher, Maria Lúcia Netto dos Santos, que queria ficar com toda a fortuna acumulada pelo alcaide. A viúva de Joca foi eleita prefeita de Belford Roxo nas eleições de 1996, ficando no poder executivo local de 1997 a 2001. 


- “A violência de Joca é reflexo de uma cultura secular, do “manda quem pode, obedece quem tem juízo, se reclamar apanha”. Desde que os colonizadores aqui chegaram, essa tem sido a tônica de se fazer entender pela força. A violência de hoje, é na verdade a ausência de décadas do Estado, de políticas públicas, de educação, qualificação e renda. Os frutos estão sendo colhidos pela população mais pobre, faminta e afastada de qualquer oportunidade. E deve piorar, se nada for feito pra se melhorar as perspectivas de futuro dessa população”, explica o especialista em antropologia, Jorge Cruz, que também é professor de História em Belford Roxo.  


A região “mais violenta do mundo” seria uma fake news? 
No ano em que Joca foi enterrado, dois cenários, um específico ao Rio de Janeiro e um sobre a Baixada Fluminense, estavam se metamorfoseando dentro do debate sobre o aumento da violência urbana no país. A cidade do Rio era constantemente apresentada pela imprensa como mais violenta do que a Baixada, por ter sido palco de operações militares. Já a Baixada Fluminense permanecia, ao seu lado, mantendo um padrão de violência maior tanto em quantidade como em duração. Pelo menos, era o que setores da mídia hegemônica queriam transparecer. 


Um dos exemplos mais simbólicos de como episódios de violência ultrapassaram as fronteiras da notícia originou-se depois de uma série de reportagens, surgidas no início dos anos 1970, descrevendo a criação dos “Esquadrões da Morte”, grupos formados por milicianos (policiais civis, militares, bombeiros e ex-policiais) que atuavam na Baixada Fluminense com o firme propósito de exterminar bandidos. A repercussão internacional sobre a origem desses grupos armados alcançou tal magnitude, que Hollywood utilizou o argumento no filme Magnum 44 (1973), estrelado pelo ator Clint Eastwood, então interpretando o policial linha dura chamado de Harry, “o Sujo” Callaham, que, em um dos diálogos na película, menciona a criação desses grupos. Esse trecho é facilmente localizado no Youtube. 


Entretanto, a espetacularização de tal fenômeno, aliada a narrativas tendenciosas e quase sensacionalistas, fez com que Belford Roxo tivesse potencializada essa fama, através de um suposto relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que teria reconhecido a localidade como “o local mais violento do mundo”, conforme divulgado na edição nº 501, de 1978, da revista Veja. A dissertação de mestrado de Marcelo Ribeiro Sales, intitulada “Memórias da Violência e Resistências Silenciadas: as ações político-educativas da paróquia São Simão em Belford Roxo”, ajuda a explicar todas origens do boato.   


Segundo a pesquisa, pouco depois, o jornal O Globo apurou que a pesquisa feita pela UNESCO não foi sobre violência, mas sobre pessoas portadoras de necessidades especiais, à época chamadas “excepcionais”. O projeto de construção do Centro Interescolar de Excepcionais Castorina Faria Lima, no bairro Monte Líbano, em Nova Iguaçu, elaborado pela Coordenação de Educação Especial da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, informava, em 1977, que, de acordo com estimativa em 95 países, 8 % das crianças que recebem educação especial em escolas primárias são excepcionais (O GLOBO, 11/10/1981). 


A matéria tinha como objetivo investigar as atuações de grupos de extermínio e relatava que Belford Roxo, então distrito de Nova Iguaçu era o local mais violento do mundo. Contudo nunca existiu tal relatório da UNESCO. Esse dado falso levou grupos influentes, como o Clube Rotary da cidade, a procurar a organização internacional, e essa informou através do seu representante no Brasil, Gustavo Lopez, que entidade nunca patrocinou nenhum estudo do tipo, e acrescentou que a sede da UNESCO em Paris, foi consultada e reafirmou não existir nenhuma pesquisa sobre violência no distrito de Belford Roxo.


Ainda segundo o estudo, em novembro de 1979, ou seja, 11 anos antes da emancipação de Belford Roxo, o repórter Percival de Souza, do jornal Tarde de São Paulo, passou três meses na Baixada Fluminense e também abordou, numa série de reportagens que mais tarde se transformou no livro “A maior violência do mundo”, que Belford Roxo, segundo a UNESCO era “o lugar mais violento do mundo”.


Segundo Percival, “Quando cheguei a Baixada já encontrei esta informação”, corroborando com a reportagem revista Veja feita um ano antes. O repórter foi à Prefeitura de Nova Iguaçu e o assessor do prefeito Ruy Queiroz, Roberto Wilson informou que havia feito um trabalho para a Escola Superior de Guerra sobre os problemas da Baixada Fluminense, e que Belford Roxo, segundo a UNESCO, era o lugar mais violento do mundo. Como o então candidato a Presidente da República, João Figueiredo, esteve em Nova Iguaçu para inaugurar uma escola para crianças com necessidades especiais, que foi construída com bases em informações da UNESCO sobre a região, Percival concluiu que a notícia, pelas estatísticas de criminalidade na região, nem precisava ser confirmada. Por fim ele finalizou: “Se a Baixada Fluminense não é a região mais violenta do mundo, é uma das mais.”


O relato no livro destacava a devida informação: “Segundo as informações atribuídas a instituição internacional, uma pesquisa de 95 países, de 1971 a 1976, constatou ser Belford Roxo, o lugar mais violento do mundo na ocasião e que, naquele período, morreram mais pessoas assassinadas em Belford Roxo do que a Guerra de Biafra (Guerra civil na Nigéria que durou de 1967 - 1970)”.


Há anos, aliás, Belford Roxo tornou-se uma referência negativa em termos de taxa de homicídios, como demonstra o subtítulo de uma reportagem do jornal O Globo no final dos anos 1990, que compara o aumento do número de assassinatos em Diadema, na grande São Paulo, com os números de Belford Roxo: “SP ULTRAPASSA RIO EM HOMICÍDIOS. Em Diadema, já se mata o dobro do que em Belford Roxo, área crítica da Baixada”, em matéria publicada em 15/08/1999.  


Mesmo posteriormente desmentida, a notícia falsa sobre o suposto relatório da UNESCO ajudou a construir o estigma da violência que a cidade carrega até hoje. Paradoxalmente, a Baixada, e mais especificamente Belford Roxo, retornam, de tempos em tempos, ao imaginário popular graças às novas manifestações políticas que colaboram para que o município permaneça no rol de estereótipos de territórios hostis, como veremos a seguir.  


Um miliciano com fome de poder (público)
De volta a fevereiro de 2023, muitos se espantaram com a indicação de Daniela do Waguinho, esposa do atual prefeito, para o cargo de Ministra do Turismo do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva. Na condição de presidente estadual do União Brasil, o prefeito Waguinho havia apoiado o ex-presidente Jair Bolsonaro à reeleição desde o começo da campanha presidencial em 2022. Mas aceitou mudar de lado, quase no final do pleito, ao receber a garantia de que sua mulher, Daniela Carneiro, ganharia um ministério, caso Lula fosse eleito. Feito o acordo, Lula foi a Belford Roxo participar de um comício organizado pelo prefeito e os três saíram triunfantes.  Enquanto o acordo ministerial estava em articulação, o jornal Folha de São Paulo revelou as ligações de Waguinho e Daniela com o “Bonde do Jura”. Desde 2006, esse grupo miliciano é acusado de causar uma centena de mortes. A estratégia do bando seria executar, principalmente, líderes comunitários, para tomar o poder político e formar currais eleitorais. 


Apontado como chefe do bonde, o então sargento PM Juracy Alves Prudêncio, o Jura, teria abrigado o ex-PM Ricardo Cruz, o Batman, chefe da milícia Liga da Justiça, quando ele foi caçado pela polícia na Zona Oeste. O bando tinha negócios variados: cobrança de taxa de segurança de comerciantes e moradores; TV a cabo clandestina; pedágio de 50 vans e kombis e 30 mototáxis; comissões sobre aluguel e venda de imóveis; venda de gás; e o monopólio da produção de CDs e DVDs piratas em Nova Iguaçu, Queimados, São João de Meriti e Caxias. Nas eleições de 2008, Jura tentou se eleger vereador em Nova Iguaçu pelo Partido Republicano Progressista (PRP). Apesar de ter tido votação expressiva, 9.335 votos, ele não conquistou o mandato porque seu partido não alcançou o quociente eleitoral. A derrota fez com que o miliciano ameaçasse de morte o então deputado federal e ex-prefeito de Nova Iguaçu, Nelson Bornier, por "tê-lo colocado em um partido fraco", segundo a CPI das Milícias. Jura foi preso em casa, no bairro Palhada, em Nova Iguaçu, em 2009. 


Em junho de 2010, o miliciano foi condenado a 26 anos de prisão por homicídio e associação criminosa. Sete anos depois, já bem relacionado com a prefeitura de Belford Roxo, e cumprindo pena em regime semiaberto, Jura foi nomeado para um cargo de assessor na prefeitura. Dali em diante, viu seu “bonde” prosperar como nunca antes. Uma das primeiras ações do grupo, ainda em 2017, foi tomar o bairro Jardim Redentor, na época controlado pelo traficante Geonário Fernandes Pereira Moreno, da facção Terceiro Comando Puro (TCP). Em 2020, Jura retornou à prisão após suspeitas de irregularidades em folhas de ponto quando era lotado na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), como segurança do então deputado estadual Wolney Rocha. 


Waguinho teria se aliado, ao agora ex-PM, tão logo assumiu a prefeitura de Belford Roxo, em 2017. Quem tratou de aproximá-los foi Marcelo Canella (União-RJ), vice-prefeito e antigo braço direito de Waguinho. De acordo com o site de notícias UOL, em 2022, quando Daniela Carneiro (União Brasil) foi eleita deputada federal com a maior votação do RJ, a ex-vereadora Giane do Jura, esposa do miliciano, fez ativamente campanha para a recém empossada parlamentar. 


Dono da segunda maior bancada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj), o União Brasil saiu rachado do segundo turno das eleições com a briga entre Waguinho, que é presidente do diretório fluminense da legenda, e o seu ex-aliado, e agora desafeto, Marcio Canella, que foi o deputado estadual mais votado no Rio de Janeiro. Aliados desde 2016 na política da Baixada Fluminense, Waguinho e Canella realizavam agendas sempre em conjunto, fosse em Belford Roxo ou em alguma ação dos governos de Wilson Witzel e, posteriormente, Claudio Castro. Chegavam a se apresentar como irmãos, tamanha a relação de amizade. 


A ministra Daniela Carneiro disse, em nota oficial emitida em janeiro desse ano, “que não teve nenhuma relação com a contratação de Jura em Belford Roxo” e ressaltou que “seu apoio político não significou compactuação com qualquer apoiador que porventura tenha cometido algum ato ilícito”. 


Diante das evidências para uma possível investigação por suposto crime de associação com organização criminosa, os Waguinhos saíram ilesos. Jura, por bode expiatório e pelos crimes que cometeu, torna-se a ponta mais fraca da corda e rompe-se qualquer vínculo com a atual dinastia da prefeitura de Belford Roxo. Pelo menos por enquanto.