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Mesa de abertura da conferência magna de lançamento do NAMVIF. De camisa brança, (terceira à direita) a secretária municipal de Assistência Social da prefeitura de Nova Iguaçu, Elaine Medeiros. Integrantes da Rede de Mães se abraçam no momento em que os nomes dos mortos, representados nas fotos da bandeira do coletivo, eram ditos pela plateia.  

15 de dezembro de 2021

Incidência política

NAMVIF É LANÇADO NO DIA INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Serviço de atendimento à vítimas de violência faz parte do conjunto de reivindicações articuladas por FGB e Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense desde 2018.

 

Depois da criação da Lei Municipal 4869/19 (de 22 de outubro de 2018) de autoria do vereador Carlos Chambarelli, que cria a semana de luta de Mães e Familiares de Vítimas de Violência[1] e da publicação, em diário oficial, do primeiro Plano Municipal de Direitos Humanos  foi a vez de a prefeitura de Nova Iguaçu, em conjunto com organizações, movimentos e membros da sociedade civil, dentre elas a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado e Fórum Grita Baixada lançar o NAMVIF, Núcleo de Atendimento Municipal a Vítimas de Violência de Estado e seus Familiares. O projeto governamental, pioneiro no Brasil, está vinculado à Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS) e foi apresentado, no dia 10 de dezembro, na Casa de Cultura Teatro Sylvio Monteiro, em comemoração ao Dia Internacional dos Direitos Humanos.

 

 “As vítimas de violência serão atendidas nos Núcleos e terão acompanhamento de psicólogos e assistentes sociais. Temos grupos de reflexão e de apoio, além de um local, na Rua Terezinha Pinto, para encontros, debates e troca de experiências. Hoje essas mulheres têm voz, um espaço para serem atendidas, ouvidas, chorarem juntas e contarem suas experiências. Discutir a garantia dos direitos humanos é ter uma sociedade mais justa”, afirmou a Secretária de Assistência Social de Nova Iguaçu, Elaine Medeiros, na solenidade de abertura.

 

Na mesa de abertura da Conferência, sociedade civil e autoridades políticas de Nova Iguaçu exaltaram a importância da criação do NAMVIF.

 

“Hoje é um dia muito feliz para todos nós e um dia de muita responsabilidade também, pois estamos assumindo um compromisso que foi pensado há três anos.  Tomei conhecimento da verdadeira dimensão da Violência de Estado quando conheci Luciene Silva (da Rede de Mães) em 2005, quando ocorreu a Chacina da Baixada Fluminense, que matou 29 pessoas. O mais triste é que essa rede só tem aumentado de acordo com o aumento dos assassinatos em favelas e outras periferias onde o Estado não se faz presente com outras políticas públicas, apenas com a força da bala, das armas e da dominação dos territórios pobres.”, disse Adriano de Araujo, coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, em seu momento de fala na mesa.

 

Na segunda mesa, composta majoritariamente por integrantes da Rede de Mães, a ativista Luciene Silva afirmou que, apesar de elogiar a importância e a iniciativa do NAMVIF, reconhece que há desafios pelo caminho.

 

“Esperamos que esses profissionais estejam preparados para fazer esses atendimentos, pois é realmente muito difícil amparar mães e familiares nessas condições depois de um episódio de violência de Estado. Quando acolhemos e escutamos outras mães vítimas da violência, sempre há a possibilidade de a “culpa” ser da pessoa que foi assassinada. O NAMVIF tem de ter um atendimento especial, individualizado, que olhe com cuidado clínico a dor dessas mães. Essas pessoas precisam de remédios para pressão, diabetes, depressão e cuidados para outras doenças causadas pelo sofrimento mental. É preciso que a Secretaria Municipal de Saúde também participe desse processo”, discursou Luciene.

 

Em seguida, a plateia gritou os nomes das vítimas, cujas fotos estampam a bandeira da Rede de Mães que foi especialmente colocada na mesa a pedido da secretária Elaine Medeiros.  O Diretor de Direitos Humanos, Kleber Gonzaga, antes de apresentar as especificações técnicas do NAMVIF, em seu momento de fala na terceira mesa, também ficou visivelmente emocionado.

 

“É difícil não olhar para essas fotos e pensar que eu poderia ser uma dessas pessoas e que a minha mãe poderia ser uma de vocês na plateia, chorando pela minha morte”, disse o Diretor. 

 

Violência de Estado

Ao especificar a violência de Estado como elemento que une as trajetórias de vida das mães e familiares de vítimas, o NAMVIF  resgata a experiência acumulada por iniciativas de organizações não governamentais voltadas a atenção psicossocial a afetados pela violência estatal.

 

Mas, por que a violência de estado mereceria tal especificidade nos atendimentos? Para o coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araujo, o Estado é o principal violador de direitos nas periferias, seja ativamente, quando a polícia invade e destrói bens dos indivíduos, quando tortura e mata, seja passivamente, quando o Estado, relega aos pobres sua própria sorte, permitindo o sucateamento da saúde, educação e assistência, permitindo que grupos vulnerabilizados não sejam amparados, consentindo que criminosos explorem ilegalmente o território, coagindo, cobrando taxas, expulsando e matando adversários e moradores.

 

“Todo esse processo, além de marcas profundas nos corpos negros e periféricos, gera adoecimentos e sofrimentos generalizados nas vítimas e no círculo familiar. Enfrentar a violência de estado não pode ser atribuição somente das organizações da sociedade civil. Por mais paradoxal que possa parecer, deve ser também responsabilidade do próprio Estado, apesar de toda a complexidade e desafios inerentes”, defende o coordenador do FGB. Ele também acrescenta: 

 

“A violência de Estado é o resultado de séculos de opressão de uma elite branca escravocrata sobre um povo negro e empobrecido; é a sociedade colonial que ativa a violência de estado. O estado moderno, moldado e formado em sua maioria por essa mesma elite branca privilegiada atualiza esta mesma violência, mantendo seus interesses e se voltando contra aqueles considerados descartáveis, perigosos e indesejáveis. A violência de Estado é aquela modalidade de brutalidade, terror e negação de direitos praticada na sob a responsabilidade do estado e dos agentes públicos... e se volta contra os mais pobres, os moradores de favelas, e periferias atingindo principalmente a população negra. Traduz-se imediatamente pela truculência e letalidade da ação de agentes públicos das forças de segurança. Assim, a face mais visível é a violência e a letalidade da ação policial, do desaparecimento forçado de corpos, da tortura e privação de direitos, mas também se manifesta pela omissão do estado ou conivência diante de práticas ilegais ou criminosas, que negam e violam os direitos básicos do ser humano. Não há a ausência do Estado diante da ampliação do crime ou da expansão das milícias ou de outros grupos criminosos ou ilegais. Só o Estado tem, constitucionalmente, o monopólio da força e, portanto, somente o Estado pode ser responsabilizado pela atuação livre desses grupos e dessas práticas”, argumenta Adriano de Araujo.

 

Na Baixada Fluminense, a dinâmica da violência de estado é ainda mais expressiva. Desde as décadas de 60, 70 e 80 com os esquadrões da morte e de extermínio e, nas décadas seguintes, com os grupos milicianos, são conhecidos diversos casos de ação criminosa não enfrentada pelo estado, ao contrário, muitas vezes contando com a participação de agentes públicos. Chacinas que ocorrem a luz do dia e que pouco são noticiadas pela grande imprensa dão o tom da tragédia e são mais que suficientes para reforçar a gravidade dessa dinâmica que continua fazendo entre os mais pobres e negros suas principais vítimas.

 

Para o Fórum Grita Baixada, a política de segurança e a política do Estado que separa quem pode morrer ou adoecer e a quem é garantido o direito de viver não pode mais ser tolerada. A natureza da violência de Estado, a forma como se manifesta pela ameaça e atuação de agentes públicos, exige do próprio poder público a responsabilidade e o compromisso em oferecer um espaço legalmente constituído e de modo continuado, acolhedor e de apoio a cidadãos e cidadãs que só querem ter seu direito a memória garantido, a luta por justiça de seus filhos assegurada a vida que lhes resta preservada em dignidade e sem violência.

 

Parcerias para a concretização de um sonho

A criação do NAMVIF é um exemplo exitoso de uma articulação e de uma incidência política feita pela sociedade civil. Tudo começou com o primeiro contato do Fórum Grita Baixada e do Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu (CDH) em 2017 no lançamento do NAPAVE (Núcleo de Atenção Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado) em 2017. Inicialmente, os atendimentos não seriam realizados na Baixada Fluminense, mas atendendo ao pedido do FGB e do CDH, tal serviço começou a ser articulado junto a Rede de Mães da Baixada.  Desde então, passou-se a alimentar a sonho de criação de um serviço público local à exemplo da iniciativa do NAPAVE.

 

O entendimento do Fórum Grita Baixada e da Rede de Mães era que as vítimas e seus familiares deveriam ter garantido pelo poder público o direito a memória e atenção psicossocial. Tal direito não pode ser descontinuado, ficar sob o risco de interrupção dos serviços ou mesmo ter seu fim diante da negativa dos financiamentos das entidades apoiadoras.

 

A aproximação com o poder público local ocorreu diante da estratégia de exibição e debate sobre violência de Estado na Baixada Fluminense e o impacto na vida da população a partir do filme Nossos Mortos Têm Voz, dirigido por Fernando Souza e Gabriel Barbosa. Vários encontros realizados em Nova Iguaçu, reunindo mães e familiares de vítimas de violência de Estado, FGB, CDH, NAPAVE e profissionais da assistência social de Nova Iguaçu funcionaram como embrião da ideia do NAMVIF.

 

Mais tarde, audiências públicas e reuniões especiais de articulação com setores do governo municipal foram pavimentando o conceito do atendimento público especializado, ao mesmo temo que se avançavam outras iniciativas correlatas como a formulação do plano municipal de direitos humanos da cidade de Nova Iguaçu, onde já consta a previsão do atendimento as vítimas de violência, enfrentamento ao racismo e responsabilização do Estado[2].

 

Com a coordenação da Superintendência de Atenção Básica de Nova Iguaçu, Juliana Gomes, a elaboração de um plano de trabalho para a construção do NAMVIF acabou ganhando celeridade e maior consistência na coordenação de esforços. Foi também Juliana Gomes que buscou articular a contribuição dos professores Marcelo Princeswall e Bernardo Suprani, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

 

A participação dos respectivos professores foi de vital importância para o processo de formação, trocas de experiências e de saberes entre os cursistas: profissionais dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), gestores da educação, representantes da sociedade civil como a Rede de Mães, Casa do Menor São Miguel Arcanjo e o próprio Fórum Grita Baixada, além de estudantes da UFRRJ.

 

Um dos aspectos mais importantes dessa primeira fase de formação, iniciada em julho de 2021 e que perdurará até o primeiro semestre de 2022, é que elementos da própria política do NAMVIF estão sendo construídos e debatidos pelos participantes do Curso, especialmente os profissionais da assistência social. Assim, mesmo que algumas definições do atendimento tenham sido construídas pela equipe de coordenação, parte do funcionamento, fluxos de atendimentos, protocolos de segurança, saúde do trabalhador e intervisão do trabalho, formação da rede de apoio, entre outros aspectos de suma importância, estão sendo constantemente elaborados e pensados pelos próprios profissionais dos Núcleos.  

 

O NAMVIF, até onde sabemos, é o primeiro serviço governamental de atendimento especializado para mães e familiares de vítimas de violência de Estado do Brasil. Trata-se de algo inédito na ação governamental brasileira. O Fórum Grita Baixada integra a comissão gestora do NAMVIF e espera assim, contribuir para que o serviço alcance os objetivos propostos e impacte positivamente nas vidas tão castigadas pela violência de quem deveria proteger, cuidar e assegurar os direitos... o Estado brasileiro.

 

O serviço traz um desafio para o serviço público ao olhar de modo especial para a dor do luto, uma realidade que acompanha a família das vítimas. As pessoas que sofrem com as consequências físicas ou psicológicas da violência de Estado poderão buscar atendimento na Diretoria de Direitos Humanos de Nova Iguaçu, na Rua Terezinha Pinto, 297 – Centro de Nova Iguaçu (próximo a prefeitura municipal), de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h.

 

[1]. A semana é realizada na última semana do mês de março de cada ano. Com isso, o Poder Executivo, em parceria com organizações da sociedade civil, poderá realizar programações especiais, visando a difusão da luta de mães e familiares vítimas da violência e a divulgação de políticas públicas que busquem atender as vítimas de violência e a reparação de direitos.

 

[2] O Plano foi iniciado em 2020 durante a pandemia, aprovado na forma da Resolução nº 001/CONSEG/2021, de 16 de junho de 2021 e finalmente publicado em diário oficial do município em 04 de novembro 2021 (PORTARIA Nº. 43/SEMAS/2021, DE 28 DE OUTUBRO DE 2021.). Trata-se de um plano que parte de uma realidade muito objetiva, muito imediata, mas que na maioria das vezes não é tratada dessa forma pelos poderes públicos: somos uma cidade majoritariamente negra e parda e essa maioria da população foi posta à margem de uma série de direitos sociais. É preciso inverter as prioridades para tratar igualmente quem sempre foi tratado de forma desigual. O plano, partindo dessa premissa, está orientado em 5 eixos: (i) enfrentamento ao racismo, (ii) enfrentamento a violência contra as mulheres, (iii) direito a alimentação, (iv) direito à moradia e a habitação de qualidade e (v) educação e cultura em direitos humanos. Esses eixos prioritários são acompanhados de eixos orientadores, a saber: (i) Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdade (II) Segurança Pública, Acesso à Justiça, Prevenção e Superação da Violência (iii) Direito à Memória e Valorização da Cultura Popular, Justiça e Atenção a Afetados pelo Estado (iv) Interação Democrática entre Estado e Sociedade e (v) Desenvolvimento Sustentável e Direitos Humanos.

 

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A superintendente de Atenção Básica da Secretaria Municipal de Assistência Social da prefeitura de Nova Iguaçu, Juliana Gomes. 

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O diretor de Direitos Humanos da Secretaria Municipal de Assistência Social da prefeitura de Nova Iguaçu, Kleber Gonzaga. 

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O coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araujo, a ativista da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense, Luciene Silva e o coordenador da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRPRJ), Pierre Monteiro.