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11 de novembro de 2021

Rio On Watch + Fórum Grita Baixada

Especialistas Pedem Lucidez Sobre PL para Implantar Câmeras em

Viaturas, Aeronaves e Uniformes da PM

 

A chacina do Jacarezinho, que ocorreu em 6 de maio, a maior já registrada na Cidade do Rio, contribuiu para que o monitoramento das ações policiais voltasse ao debate público e às instâncias políticas do Estado. Após pouco mais de três meses, em 29 de agosto, o Deputado Estadual Carlos Minc escreveu em seu perfil em uma mídia social que “Se a lei já estivesse sido aprovada, não teria ocorrido o massacre do Jacarezinho. Em São Paulo, a instalação dessas câmeras reduziu em 40% a mortalidade nas ações da PM”

 

Minc estava se referindo ao Projeto de Lei 265/2015, aprovado apenas em maio deste ano pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), seis anos depois do texto ser apresentado. A proposta, no entanto, é ainda mais antiga. O PL apresentado em 2015 foi uma atualização da Lei 5.588/2009—que não estava sendo cumprida—elaborada pelo então deputado estadual Gilberto Palmares.

 

Na época, após passar pela Alerj, o projeto de lei foi vetado pelo então governador do Rio, Sérgio Cabral. De maneira questionável, pois já se trata de política comum em muitos países, ele considerou o projeto preconceituoso com os policiais. No final de 2009, o veto do governador foi derrubado pela Alerj, que aprovou o projeto, determinando a instalação de câmeras vídeo, com captação de áudio, nas viaturas da Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros.

 

O registro das imagens e áudios estaria ligado a um sistema central de monitoramento, que tinha como objetivo proteger a população das ações dos chamados “maus policiais”. Ao mesmo tempo, o sistema defenderia os agentes de segurança de acusações inverídicas. O projeto aprovado em 2009, contudo, nunca foi implementado.

 

A instalação de câmeras nas viaturas e uniformes das forças de segurança pública deverá fornecer a produção de provas em casos que envolvam policiais em ocorrências ilícitas e criminosas, cuja investigação, sem câmeras, só seria possível a partir de relatos de testemunhas—muitas vezes inexistentes.

Porém, na última década, muita coisa mudou, existindo hoje elementos novos que podem atrapalhar o bom uso dessa política e que precisam ser considerados.

Milicianos estão hoje no poder público, por exemplo, com ampliado poderio econômico e político, expansão territorial em regiões periféricas e o apoio de empresários e membros do sistema de Justiça.

 

Ao ser perguntado sobre o aumento de ramificação de milicianos—incluindo os já existentes tanto na Polícia Civil quanto na Polícia Militar—e o risco desses grupos organizados burlarem, de forma sistemática, o monitoramento estabelecido pela PL 265/2015, Carlos Minc respondeu: “Eles sempre tentam atuar de maneira a obstruir a produção de provas. Devemos deixar claro… que as câmeras privilegiam a atuação dos bons profissionais”, disse o deputado.

 

Outra controvérsia estava relacionada ao prazo de armazenamento das imagens que, inicialmente, seria de cinco anos, o tempo considerado adequado segundo especialistas, para se montar o devido processo penal. Porém, após negociação entre o Parlamento e o Executivo ficou estabelecido um período de dois anos. Algum tempo depois, a Secretaria de Polícia Militar propôs mais uma redução após a conclusão de um estudo técnico. Devido a uma restrição tecnológica e orçamentária, o órgão propôs fazer o armazenamento do material por um período máximo de até dois meses após o ocorrido. 

 

“Esse prazo de 60 dias é muito pequeno devido à morosidade das investigações. No entanto, nos casos mais graves, tivemos uma importante vitória, e conseguimos o aumento do prazo de armazenamento para doze meses”, explicou o deputado Carlos Minc.

 

Para o sociólogo Adriano de Araújo, coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, movimento social que atua no combate à violência de Estado na Baixada Fluminense, é preciso lucidez na condução dessa política pública.

 

“A forma como isso será feito—incluindo os mecanismos de controle externo—é que dirá se teremos ou não a possibilidade de redução efetiva na letalidade da ação policial. Entretanto, penso que não devemos particularizar e subjetivar a ação policial ou qualquer outra ação de Estado. Temos uma estrutura que, no seu conjunto, tem se mostrado altamente letal para a população negra, pobre e das periferias. Existe todo um conjunto de fatos que fazem da polícia fluminense uma das mais letais do Brasil e isso precisa ser enfrentado por todos nós. O uso das câmeras é importante, mas é apenas um elemento dessa equação”, defende Araújo.

 

Rodrigo Mondego, vice-presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), mostra, como Minc, entusiasmo e considera legítimas as argumentações de que uma política pública atrelada à inovações tecnológicas pode auferir bons resultados no que se refere a moralizar a segurança pública no estado do Rio.

 

 “De lá pra cá muita coisa mudou, inclusive a tecnologia empregada pra fazer esse monitoramento. Não existiam muitos smartphones, por exemplo. Essa produção de imagens na área de segurança pública mostrou diversos casos que foram apurados posteriormente. Quando a lei foi implementada, se mostrou eficaz no enfrentamento aos maus policiais, especialmente no caso da Favela da Palmeirinha, onde mataram um rapaz e prenderam um outro, acusado de tráfico. A câmera na viatura provou que as alegações dos PMs eram mentirosas. Teve um caso semelhante no Morro do Sumaré que também foi desmentido”, analisa o advogado.

 

Ele complementa: “Infelizmente as câmeras, pela pouca aplicabilidade jurídica na produção de provas contra os ‘maus agentes’, ainda não podem ser consideradas um caso de sucesso. Hoje, essas câmeras são mais baratas em termos de instalação, mais eficazes em termos de armazenamento e quantidade de armazenamento de imagens, então fico um pouco mais esperançoso por novos resultados”, aponta Mondego.  

 

Apesar das boas intenções, nem todos partilham dessa esperança, como evidencia o pesquisador Pedro Paulo da Silva, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). Ele lembra que, segundo dados do Anuário de Segurança Pública, publicação anual elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), policiais negros são os que mais morrem embora sejam minoria nas corporações. Os brancos, que são 56,8% do efetivo das polícias, foram vítimas de 34,5% dos homicídios. Já os negros são 42% do contingente de policiais, mas sofrem 62,7% de todos os assassinatos.

 

“O maior problema em relação ao debate sobre as câmeras é que parece que existe uma certeza indiscutível acerca da efetividade dessa tecnologia… [há] uma zona cinzenta entre essa tecnologia ser ‘boa’ ou ‘ruim’. Ao falarmos de vitimização de policiais, a primeira pontuação deve sempre ser que a maioria dos policiais morre fora de serviço, então seria mais útil investigar os contextos dessas mortes e desenvolver estratégias para evitar que policiais reajam a assaltos de qualquer maneira ou utilizem armas em conflitos interpessoais, e investigar a execução de policiais fora do serviço para tentar elucidar o porquê isso ocorre”, disse Pedro Paulo.

 

Na opinião do pesquisador, enquanto política pública e sua contribuição para reduzir ações racistas nas abordagens policiais, as câmeras nos uniformes e viaturas da PM estão longe de resolver a questão: “É incômodo que exista a pressuposição de que policiais não são inteligentes a ponto de desenvolver novas formas de brutalizar a população por dentro dos mecanismos de controle. Afinal, estamos falando de racismo e isso não pode ser resolvido lidando com as consequências dele. Somente [será encarado observando] a raiz racista das polícias. O que garante que o vídeo de uma pessoa sendo morta pela polícia vai garantir que haja punição?” questiona Pedro Paulo.

 

Como exemplo, o pesquisador lembra: “A gente pode mencionar os casos dos Estados Unidos em que havia vídeos das mortes de diversas pessoas e os policiais não foram punidos, com exceção do caso George Floyd. E nem é preciso ir longe. Será que as pessoas se esqueceram do vídeo gravado com o corpo de Claudia sendo arrastado por uma viatura da PM? Aquele vídeo alterou alguma coisa?”  

 

Quem também vê com muita cautela os pretensos resultados positivos dessa política é Luciano França, representante da Frente pelo Desencarceramento RJ, movimento que luta pela diminuição da população carcerária, majoritariamente formada por pessoas negras, periféricas e de baixa renda.

 

“Não surpreende o modus operandi desse Estado em relação à vigilância e monitoramento. Temos dúvida se tal ação impedirá atos de truculência, violência e torturas. Nós não sabemos se o Estado vai cumprir a lei que determina a instalação das câmeras em todas as viaturas policiais. Essa lei vai ser estendida também aos helicópteros e carros blindados que invadem as favelas e são utilizados como máquinas de matar? O Estado é racista e não tem qualquer compromisso com as vidas das populações negras e periféricas e não será com estes equipamentos que isso mudará”, comenta o ativista.

 

“A lógica é atender ao mercado da segurança. A reparação se dará a partir do momento em que políticas públicas voltadas ao desencarceramento, à desmilitarização e à implementação de outras ações afirmativas de curto, médio e longo prazo forem adotadas”, finaliza Luciano França.