19 de fevereiro
Fórum Grita Baixada + Rio On Watch
Diocese de Nova Iguaçu organiza encontro de formação para a Campanha da Fraternidade 2018
A superação da violência é tema da Campanha da Fraternidade de 2018, inaugurada no Rio de Janeiro no último sábado dia 17 de fevereiro, na Catedral Metropolitana de São Sebastião. A Campanha, criada em 1964 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, é uma atividade de evangelização da Igreja Católica com fortes vínculos com a Teologia da Libertação, corrente teológica e política nascida na América Latina que parte da premissa que a Bíblia exige que os cristãos assumam compromissos para com os pobres e para a redução de desigualdades–comumente vista como aplicação dessa teoria aos problemas concretos enfrentados na terra. Por conta disso, possui um forte componente de transformação social, ao tomar a forma de uma campanha para ajudar as pessoas a realizarem tais compromissos, objetivando promover uma série de renovações dentro da Igreja e como elas podem incidir nas transformações da sociedade. Assim, a partir do tema da superação da violência, o texto-base da campanha traz um amplo leque de problematizações acerca das formas que ela assume e recomendações concretas para superá-la.
No dia 3 de fevereiro foi realizado pela Diocese de Nova Iguaçu um encontro de formação visando a preparação para o lançamento da campanha, do qual todas as dioceses do Rio irão participar. Foram convidados para liderar a formação o ex-deputado estadual e atual Superintendente Regional do Trabalho e Emprego do Estado do Rio de Janeiro, Robson Leite, o deputado federal Alessandro Molon e o educador e sociólogo Tobias Tomine Farias. A discussão é representativa da Igreja Católica no exercício de seu papel social, em especial em um território marcado por violências como o da Baixada Fluminense.
A metodologia do encontro baseou-se em uma ferramenta de observação e análise oriunda da própria Teologia da Libertação para garantir que o debate e a formação se desse com base nos princípios da justiça social. Essa ferramenta consiste no Método Ver, Julgar e Agir: conhecer a situação e problema concreto (“Ver”), examinar essa realidade à luz da doutrina da Igreja Católica (“Julgar”) e, por fim, agir de acordo com as circunstâncias de tempo e de lugar, proporcionando que as vítimas dos processos de exclusão tomem em suas mãos o seu lugar na história e assim, se reconheçam e sejam reconhecidas como protagonistas (“Agir”).
Robson Leite, ao iniciar a fase do Método “Ver”, fez um balanço sobre algumas das mais perversas formas de violência em sociedade, principalmente contra mulheres e as que envolvem intolerância religiosa. “No Rio Grande do Sul, existe uma experiência pioneira em que as policiais femininas visitam as residências das vítimas, principalmente de violência doméstica, não apenas para aprofundar as investigações, mas lhes dar acolhimento em relação a essa situação tão delicada. Vivemos em um país que criminaliza a vítima”, explicou Leite. Ele também demonstrou impressionantes dados sobre episódios de intolerância religiosa. Segundo informações disponibilizadas pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, no período de 2011 a 2015, 697 denúncias envolvendo atentados e outras formas de violação a religiosos, especialmente os de matriz africana como umbanda e candomblé, foram apuradas.
É especialmente simbólico que esse debate tenha se dado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, região que conta com altíssimos índices de violência contra a mulher e de violência baseada em intolerância religiosa. Em 2015, as mulheres vítimas de agressões físicas representaram o segundo maior público de pacientes que o Hospital da Posse, também localizado em Nova Iguaçu, atendeu, atrás apenas das pacientes vítimas de acidentes de trânsito. Além disso, o ano de 2017 testemunhou um aumento em 40% dos casos de intolerância religiosa no município, que tem mais de 253 centros ligados a religiões de matriz africana registrados, o maior número dentro os municípios da Baixada, com pelo menos sete terreiros depredados e, inclusive, uma idosa agredida.
Em seguida, foi a vez do sociólogo Tobias Tomine aplicar a fase do Método “Julgar”. Tomando por base as relações conflituosas existentes na própria Igreja, mais especificamente o posicionamento político-ideológico dos fiéis, presos a uma dicotomia de progressistas vs.conservadores. Ele defendeu como o pragmatismo de olhar esses posicionamentos como uma dicotomia perfeita é prejudicial para se compreender as complexidades de uma sociedade inteira. Tomine foi buscar nos escritos do Papa Bento XVI, em sua “Mensagem para o 42º. Dia Mundial da Paz”, de 2009, palavras que justificam a luta pela justiça social–o Papa diz na mensagem que “não se vence a violência sem atenção aos pobres e sem o combate à pobreza”. “A pobreza está entre os fatores mais frequentes que favorecem e agravam os conflitos, mesmo os conflitos armados. Estes últimos alimentam trágicas situações de pobreza”, colocou Tomine.
Já o deputado federal Alessandro Molon, ao abordar a fase do Método “Agir”, o fez a partir de três vertentes. A primeira foi a “família”, mas, em vez de exultar apenas o modelo tradicional de núcleo familiar como se espera muitas vezes dos religiosos, o parlamentar concentrou sua fala em formas de proteção a todas as configurações familiares. “Nós temos que proteger as nossas famílias do discurso de ódio. Ninguém nasce violento, como diria Nelson Mandela. Se elas aprendem a odiar, elas precisam aprender a amar. Temos também que proteger as nossas famílias da precarização do trabalho. Agora um pai e uma mãe, para sustentar a casa, vão ter de trabalhar quase 18 horas por dia. Afastar os filhos da convivência dos pais, é uma forma de se destruir as famílias”.
Sobre a segunda, a “comunidade”, ele disse, fazendo alusão indireta aos recentes casos de violência ocorridos no país, que é necessário que se crie metodologias para a recuperação de quem errou. “A pena no Brasil é apenas a prisão. Precisamos de leis para se desafogar o sistema penitenciário, que reduzam a quantidade de crimes que necessitem de prisão. Para vocês terem uma ideia, a nossa legislação penal protege mais a mercadoria e o patrimônio do que a vida humana. Quem falsifica remédio farmacêutico pode pegar uma pena maior do que aquele que cometeu homicídio”, disse o deputado. Finalmente, sobre a “sociedade”, Molon disse que umas das soluções para se enfrentar a violência é o desarmamento. “Ao contrário do que se pensa, quem mata mais não é o crime organizado, não é o fuzil. Os maiores registros de homicídio, um em cada 3 assassinatos por arma de fogo, são casos que envolvem briga de bar, ciúmes, motivos fúteis. Estudos comprovam que se houver uma redução de 1% do volume de armas em circulação, haverá uma redução de 2% no número de homicídios”, afirmou o parlamentar.
Assim, muito longe de ser generalista, a violência discutida no documento da campanha toma dimensões concretas e merece ser observada em toda a sua complexidade. Oito tipos de violações, e algumas de suas implicações, são citadas em quase 20 páginas. Há leituras sobre a violência policial, mas também sobre a ineficiência e iniquidade do Poder Judiciário, bem como do próprio sistema penal, caracterizando a campanha como uma oposição ao contexto histórico conservador que atualmente permeia o discurso de parlamentares e autoridades das mais variadas esferas de poder do país.
Essa impressão é reforçada em uma entrevista feita com dois padres da Baixada Fluminense pelo Fórum Grita Baixada no final de janeiro. Os padres Elias da Conceição, de Queimados, e Jacques Kwangala, de Engenheiro Pedreira, analisam que o principal tipo de violência a ser combatido é a institucional. “Não se trata apenas de uma violência explícita, como a que ocorre em um tiroteio, por exemplo. Não é apenas uma bala perdida que tira a vida de uma pessoa ou a deixa incapacitada. A sociedade precisa estar atenta. O que nos preocupa, também, são as formas sutis de violência, pois muitas vezes elas têm até um respaldo legal, mas não são justas”, diz o padre Elias.
Já o padre Jacques avança em outros temas que dialogam com a violência estrutural. “Temos que estar atentos a questões como o racismo, a questão econômica e a política partidária. Sobre o racismo, a Igreja tem apresentado várias formas de luta, como a construção da Pastoral Afro, que faz a interligação com a cultura africana. Temos de dar destaque ao trabalho das várias pastorais sociais que ajudam a construir uma série de reivindicações como a educação inclusiva, as políticas públicas, enfim, como elas atuam na promoção da justiça como um todo”, diz padre Jacques. Confira abaixo a entrevista completa.