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06 de fevereiro de 2024

Entrevista do mês: Mylena Mello

“Estar em altos cargos nem sempre é o objetivo principal das mulheres que trabalham no tráfico”

FGB conversa com a cientista social que realizou pesquisa com mulheres presas por tráfico de drogas e relata rotina de reflexões, disputas e como são construídas as hierarquias nesse cenário. 

 

Muito se noticiou sobre como o poder masculino dita as regras que operacionalizam o tráfico de drogas. Seus processos de arregimentação de pessoal, as perspectivas e necessidades surgidas em relação a obtenção de ganho e status, códigos de ética, disputas internas por liderança, etc. O que pouco se sabe é como todos esses elementos se apresentam quando mulheres passam a fazer parte dessa estrutura, desde a base da pirâmide até quando alçam posições de liderança.  

 

Pensando nisso, a mestre em Ciências Sociais do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Mylena Mello, conversou com algumas dessas mulheres. As respostas resultaram na sua dissertação de mestrado intitulada “Trabalhar no tráfico: experiências de mulheres no mercado das drogas”. Dentre os temas abordados, há inquietações sobre como elas se organizam em um ambiente altamente masculinizado. Em sua pesquisa, ela propõe compreender a questão do trabalho de mulheres no tráfico de drogas, percebendo como elas relatam as suas experiências nesse ambiente.

 

Longe de se querer naturalizar infrações penais graves, ilegalidades ou quaisquer outras implicações criminais, o objetivo da pesquisa foi compreender os aspectos e contextos relativos às escolhas e dinâmicas comportamentais que direcionam os caminhos para o encarceramento feminino. Ou como escreve a autora: “perceber os discursos e relatos sobre as experiências de vida e atuação de mulheres no tráfico de drogas, com o recorte na prisão, bem como as narrativas que elas produzem sobre o ingresso, permanência e saída, ou não, do tráfico de drogas, bem como a vida no cárcere”.

 

Segundo a pesquisa, o Relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN, lançado em fevereiro de 2020, demonstra um dado crucial para a compreensão da dimensão da chamada “Guerra às Drogas” no Brasil: em 1990, ano de promulgação da Lei de Crimes Hediondos, o total de presos no Brasil era em média de 90 mil. No período de julho a dezembro de 2019, esse número é de 755.274 pessoas. Em um intervalo de 30 anos registra-se aumento de 831% em dezembro de 2019. Os dados mostram a contínua e cada vez mais acentuada opção das políticas públicas brasileiras pelo encarceramento em substituição às políticas sociais.

 

Entretanto, dados estatísticos mais recentes do Sistema Penitenciário presentes no Relatório de Informações Penais (Relipen), do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, apontam que houve uma diminuição no contingente de encarceramento. No primeiro semestre de 2023, a população prisional do país seria de 644.305 pessoas. Desse montante, contabiliza-se 27.375 mulheres encarceradas. No Estado do Rio, a população feminina seria de 1.537 ingressas no sistema. 

 

Com cerca de 300 mulheres, o presídio Talavera Bruce foi inaugurado em 1943. Localizado no Complexo  de Gericinó, em Bangú, na zona norte do Rio, foi ali que parte da pesquisa de campo se desenvolveu. A unidade foi projetada para oferecer oportunidades educacionais e profissionalizantes para as mulheres, visando prepará-las para uma reinserção na sociedade após o cumprimento de suas penas. Entretanto, o sistema prisional enfrenta desafios significativos, e o “TB” não está isento dessas questões. A superlotação, as condições precárias e outros problemas são desafios enfrentados por diversas instituições desse tipo no Brasil. O debate sobre a reforma do sistema carcerário continua sendo uma pauta relevante no contexto social e político do país.

 

Entrevista a Fabio Leon

 

O que a motivou a escrever essa dissertação?

Foi o trabalho de campo que realizei em 2018, para construir a minha monografia. Nesse campo, durante três meses, eu entrevistei 10 mulheres presas por tráfico de drogas na Penitenciária Talavera Bruce, que fica aqui na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Depois de elaborar a monografia, eu refleti ainda mais sobre todos os assuntos com os quais eu me deparei em campo e eu notei uma divisão sexual do trabalho no tráfico de drogas, assim como a ideia de que o feminino está ligado ao trabalho manual por mulheres terem “mais paciência e delicadeza”, como elas me relataram. Mas, diferente de outras pesquisas, que demonstram que as presas se declaravam em funções subsidiárias e subalternas como mula, peão ou cúmplice, no meu campo, na Talavera Bruce, as funções declaradas por elas foram desde as mais subalternas até o posto de gerentes e donas de boca. Deixando claro que, ao longo da atuação no tráfico, elas geralmente perpassavam por muitas funções hierárquicas. Desde a monografia, eu quis me situar no campo da problematização da tradicional perspectiva, que caracteriza as experiências de mulheres criminosas pela via da vitimização e da submissão, sem ignorar, obviamente, os problemas estruturais que cercam essas escolhas.

 

Como foi entrevistar essas mulheres que estão no sistema?

No meu campo, em 2018, pra monografia, eu ia na penitenciária conversar com elas sobre as suas histórias de vida e de atuação no tráfico. Então era uma conversa mais livre. Às vezes, perdíamos horas falando sobre assuntos que não tinham a ver com o tráfico em si. Falávamos sobre acontecimentos na cadeia, sobre suas vidas privadas. Eu tive mais tempo pra criar uma certa intimidade com elas, porque foi uma convivência durante três meses. Alguns dias de campo eram mais difíceis, porque os assuntos eram bem pesados e tristes mesmo. Mas no geral, as conversas sempre eram fluidas, inclusive divertidas. Eu era muito nova, tinha 23 anos, então elas eram muito cuidadosas comigo.  Eu moro muito próximo à penitenciária, na comunidade da Vila Kennedy, fui nascida e criada aqui. Então, quando elas souberam disso, percebi que isso quebrou o gelo inicialmente. O meu bairro realmente gira muito em torno do complexo penitenciário. Elas me perguntavam muito sobre como estava aqui fora e tudo mais. Em 2020, o trabalho de campo para a dissertação foi suspenso por conta da pandemia, então algumas histórias contadas pelas mulheres com quem conseguir dialogar, não foram concluídas. Além disso, antes mesmo da suspensão do campo, eu encontrei resistência de algumas mulheres em falarem comigo, quando entendiam que o meu propósito ali era conhecer mais a dinâmica delas enquanto pesquisadora. Meu intuito sempre foi fazer pesquisa e não investigar de forma jornalística ou jurídica. Teve caso de uma mulher muito respeitada na cadeia que não topou participar da pesquisa porque para ela já era errado ficar falando sobre isso.

 

Segundo a sua pesquisa, a cada ano que passa, mais mulheres entram no mercado das drogas e são presas. Por que isso acontece?

Há pesquisas que investigam a relação do tráfico de drogas com as altas taxas de aprisionamento feminino no nosso país, a partir da perspectiva da criminologia feminista e da feminização da pobreza.  Compreendendo que há um perfil de mulheres que atendem a seleção discriminatória do sistema penal. São jovens, negras, mães, chefes de família, em vulnerabilidade social e com histórico de abuso de drogas. Então, vem de um ponto de vista mais macrossociológico esse crescimento das mulheres nos mercados das drogas. Tem a ver com mudanças mais estruturais no mercado de trabalho, do desmoronamento e da precarização do trabalho mesmo. Ou seja, são dimensões da própria dinâmica do capitalismo que produz alterações nos mercados formais, informais e legais. Isso afeta particularmente as mulheres.

 

Segundo a sociedade patriarcal vigente, ainda prevalece a teoria do “amor bandido”? Ou seja, que muitas mulheres entram no mundo do crime em função do envolvimento passional com seus parceiros?

A teoria do amor bandido ainda está muito presente no imaginário social, mas na vida real é diferente. Depois que eu comecei a apresentar minha pesquisa em jornadas e congressos, eu notei, a partir dos trabalhos de outros colegas, que também fizeram trabalho de campo e pesquisaram o tema, de que havia o desejo claro de grande parte das mulheres traficantes em se distanciar da visão estereotipada de que seriam “mulheres de bandido”. Uma mulher que trabalhava pelo PCC, repetiu algumas vezes em nossa conversa, como ela era a bandida, superior ao seu marido e não a mulher do bandido. Outra mulher, que também trabalhava pela mesma facção, no final da nossa primeira conversa, bateu no peito e disse “eu não sou mulher de bandido, eu sou bandida”. Então, de fato, constatei esse desejo delas em se distanciarem desse estereótipo.

 

O que pode ser dito, considerando o aspecto levantado na sua pesquisa, sobre as questões racial e de classe, quando elas se arriscam no tráfico internacional de drogas em relação ao cotidiano do tráfico de drogas em favelas?

A minha pesquisa não focou no tráfico internacional especificamente, mas o que eu pude notar é que essa modalidade de tráfico possui uma outra dinâmica mesmo. Como elas falavam, envolve outros atores e muito mais dinheiro. Então, conversei com uma mulher que atuava no tráfico internacional. Conversávamos sobre as viagens que ela fazia, ela começou a dizer que eu seria ótima para o tráfico internacional por ser bonita, branquinha, falar bem. Essas foram exatamente as palavras dela. As mulheres negras estão mais presentes no tráfico das favelas. Isso demonstra também uma divisão racial do trabalho no tráfico de drogas. Porque determinadas mulheres, geralmente mulheres brancas, são escolhidas pra atuar no tráfico em outros países. Na prisão, eu soube que há recrutamento de pessoas pra realizar essas viagens através do WhatsApp. Então, a pessoa precisa enviar uma foto para ter a sua aparência analisada e, então, aprovada para estar no tráfico internacional. Ela precisa realizar seu trabalho que é passar despercebida pela seletividade policial nos aeroportos nacionais e internacionais, além de, naturalmente, entregar e pegar drogas. Então há de fato uma questão de raça, gênero e classe no tráfico.

 

Sua pesquisa faz comparações sutis entre o mundo do tráfico e o mercado de trabalho formal. Uma de suas entrevistadas afirma que o “tráfico é uma empresa”. Pensando dessa forma, assim como nos ofícios comuns, a criminalidade tem os seus cotidianos de machismo e assédio com as mulheres?

Com certeza há machismo e assédio com as mulheres no tráfico. Infelizmente, isso ocorre em qualquer circunstância da vida de uma mulher. Não seria diferente no tráfico. Muitas mulheres me relataram que se incomodavam com o assédio que sofriam dos meninos na boca. Por isso algumas evitavam se relacionar ou não se relacionavam com homens do trabalho. A questão do respeito, do pulso firme, aparece como sendo requisito obrigatório pra trabalhar no tráfico de forma geral. Mas, aparentemente, apenas as mulheres se privam de relacionamentos no momento de trabalho. Então isso é diferente pra elas.

 

Como é que a questão do respeito e do reconhecimento, para essas mulheres, ao assumir posições menos subalternizadas na hierarquia do tráfico?  

Elas me diziam muito sobre como era preciso “mostrar serviço”.  Ou seja, a ordem era para se cumprir as objetividades de cada função, mas no caso delas, a cobrança sempre era muito maior. Tinha que haver uma equidade de desempenhos que fossem satisfatórios para os chefes/donos dos pontos do tráfico, mas, ao mesmo tempo, certas exigências não recaíam de forma demasiada aos homens. As minhas interlocutoras relataram que tinham um nível de escolaridade superior ao deles, pois tinham áreas no tráfico que exigiam boas noções de matemática, por exemplo, para se organizar a contabilidade das demandas. Esse diferencial fazia com que crescessem de forma natural por causa desse conhecimento a mais. Quando eu pedi a uma delas para me explicar melhor como ela mostrava esse serviço, ela me dizia: “a vida no tráfico é muito corrida, cresci de forma natural, eu não tinha ambição de ser gerente porque quem está de fora, o olho cresce, rola uma maldade, ambição”. Então, falando sobre as funções, essa mulher afirmou que a função mais arriscada é a de vigília. Ela já foi vigília, depois gerente, depois teve o espaço dela. Mas ela disse que gostaria muito de ter sido “mula” (transportadora de carga) também. Nesse caso, a gente se depara com uma perspectiva diferente. Muito se fala em como o cargo exercido por uma mulher é precário e, portanto, pior em comparação ao cargo de gerente de ou mesmo de dono. Mas o posicionamento dela, que já foi dona de ponto de venda de drogas e que gostaria de ter atuado como mula, por conta da grande inveja e competição que existe em cargos altos, nos faz reconsiderar ideias usuais sobre a vida no tráfego. As mulheres estão presentes em variadas funções no tráfico de drogas, como cargos de chefia, assim como os homens. Mas também, ascendem no tráfico por terem postura, por desempenharem bem suas funções. Os casos que eu trouxe na dissertação, nos ajudam a relativizar um pouco a ideia de que cargos hierárquicos ditos como altos, são os melhores e mais almejados. Muitas delas preferem estar em cargos de maior risco de vida como o de segurança, de mula, de “vapor” (responsável pela venda no varejo diretamente aos consumidores), porta-voz. Cargos que proporcionam uma certa autonomia. Elas sempre falam disso, que trabalham muito sozinhas. Eles preferem estar nesses cargos do que estarem funções na boca, em contato com outras pessoas, principalmente homens.