31 de janeiro de 2023

Entrevista do mês: Mãe Conceição D´Lissá

Quase 10 anos do atentando ao terreiro Kwe Cejá Gbé 

“Mesmo depois dos ataques, eu distribuí comida para as comunidades do entorno, para as igrejas evangélicas aqui das redondezas”.

 

A polícia até hoje não tem nenhuma pista da autoria do incêndio criminoso no seu terreiro de candomblé, o Kwe Cejá Gbé, A Casa do Criador, em Imbariê, Duque de Caxias. O crime ocorreu em 26 de junho de 2014. Há quase 10 anos, o caso permanece sem solução. Antes da materialidade do atentado, mãe Conceição já estava convivendo com ameaças e agressões havia oito anos.

 

O ataque foi registrado na 62ª Delegacia de Polícia, em Imbariê, bairro de Duque de Caxias. Três anos depois, em 2017, o local recebeu uma doação de R$ 11 mil da igreja evangélica para realizar uma reforma. A presidente do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado do Rio de Janeiro (CONIC-Rio), pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, decidiu promover a reconstrução do terreiro com a doação do dinheiro.

 

Por causa dos estragos provocados pelo incêndio, os objetos sagrados precisam ser deslocados de forma provisória para outro canto do terreiro, afim de que não sejam danificados em função das grandes chuvas. Fórum Grita Baixada documentou em vídeo parte do drama do Kwe Cejá Gbé que pode ser assistido aqui

 

A grande repercussão do incêndio não impediu que novos casos de violência contra terreiros surgissem. No início de agosto de 2019, o Ilê Axé de Bate Folha, também em Duque de Caxias, foi invadido por traficantes, que destruíram todas as imagens e oferendas e ameaçaram de morte a mãe de santo, que buscou refúgio na casa de parentes, fora do Estado.

 

Nesse ano, a Baixada Fluminense concentrava 35% dos 200 ataques registrados de janeiro a setembro daquele ano em todo o Rio de Janeiro, segundo a Comissão Estadual de Combate à Intolerância Religiosa e o Racismo, coordenada pelo babalaô Ivanir dos Santos. Em 2022, dados da Delegacia de Combate a Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), especializada no atendimento às vítimas de condutas discriminatórias, como homofobia e outros crimes com motivação de ódio e discriminação, contabilizou 83 registros de ocorrência no Estado referentes à racismo religioso.

 

A entrevista aconteceu quase uma semana depois de recém-eleito presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, ter sancionado (em 6 de janeiro) a lei 14.519 que define o dia 21 de março como Dia Nacional das Tradições das Raízes das Matrizes Africanas e do Candomblé. O texto foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) e também assinaram o documento a recém-empossada ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e a ministra da Cultura, Margareth Menezes.

 

Entrevista a Fabio Leon

 

Conte um pouco da sua história

Meu nome é Maria da Conceição Cota Baptista. Me iniciei no candomblé em 1988, antes eu era de umbanda, acompanhando a minha irmã mais velha. Meus pais eram católicos. Minha mãe inclusive foi criada em colégio interno de freira dos 4 aos 18 anos e aprendi a ler no catecismo. Ela mantinha um cotidiano de orações, ia à missa todo domingo. Mas eu não me achei na igreja católica. Eu tenho essa minha religiosidade por amor. Eu não vim pela dor, por saúde, por ter perdido um ente querido. Foi algo que sempre idealizei pra mim. Minha mãe de santo era de umbanda e foi pro candomblé e eu a segui. Depois ela foi cometida com o mal de Alzheimer. Nós não temos uma epifania ou um chamado para seguir, assim como acontece nas religiões cristãs. Tudo acontece em torno de nossa ancestralidade. Nós vivenciamos a experiência de um legado. O candomblé é um modo de vida. Quando dissemos que somos povos tradicionais de matriz africana, é porque enquanto povo, ocupamos um território de África. Isso aqui é um quilombo, pois falamos uma língua diferente, nos vestimos diferente, comemos diferente, rezamos diferente, fazemos artesanato, tecelagem, costura pintura, tudo de maneira peculiar. Aqui a criança mais velha, vai ensinar ao mais novo. Mas não é em termos de idade, mas sim em termos de iniciação. Você pode ter muito tempo de idade, mas ainda lhe falta o conhecimento sobre ser candomblecista. Vivemos essa religiosidade 24 horas por dia.     

 

A senhora é formada em Direito. A escolha por essa graduação tem a ver com os rumos que a sua militância tomou?

Eu queria entender o Direito porque muitas vezes falamos sobre justiça, mas desconhecemos os seus trâmites e os mecanismos que tornam as coisas justas; o que é justo, como ser justo nesse país. Já estava com meus 50 anos, rompendo os paradigmas e os estereótipos da idade, de que a gente tem que sentar e fazer tricô. O que chamam agora de etarismo. Atuei durante um certo tempo na Vara Cível e depois me apaixonei pela Vara de Família, trabalhando como conciliadora durante 4 anos, de forma voluntária, pois aqui no Rio não há salário para esse cargo. Quando mataram a Marielle eu comecei a articular formas de como os nossos movimentos poderiam criar uma frente de trabalho com foco nas questões jurídicas e de legislação. Ou seja, qual o papel que iríamos exercer naquele momento? Então eu pude orientar algumas questões. Pra mim foi um arcabouço pra minha militância, mas nunca foi a minha intenção advogar. Fiz faculdade, me graduei, quis conhecer os meandros do sistema de justiça.

 

A senhora também é psicóloga. Como foi o cotidiano de atendimentos durante a pandemia?

Fizemos um projeto em parceria com o instituto Bráulio Goffman (grupo de estudos que objetiva o debate, reflexão e divulgação de saberes do candomblé) para atendermos nossos irmãos na pandemia via internet. Psicólogas e psicólogos de matriz africana atendendo o nosso povo de santo. Duvido que teríamos esse tipo de atendimento no serviço público, já que somos esquecidos em tudo. Os sofrimentos psíquicos eram os mais variados. Ficávamos afastados de nosso sagrado. Os terreiros fecharam por causa do risco de contaminação em função das aglomerações. As pessoas não podiam ir aos seus pais e mães de santo. Aí veio o isolamento social, muitos pais e mães de santo deprimidos, sem seus filhos de santo. Tivemos o problema da fome, que só foi um pouco amenizado graças a iniciativas como as do Fórum Grita Baixada, Movimenta Caxias, Viva Rio e de outras instituições. Eu distribuí comida para as comunidades do entorno, para as igrejas evangélicas aqui das redondezas. Mas muito filho de santo foi impedido de pegar cesta básica porque só os pastores liberavam e todos da igreja sabiam que eles eram de matriz africana. Foi muito além dos atendimentos psicoterápicos. Nós psicólogos prezamos muito o olho no olho e tivemos que fazer tudo à distância. As vídeo-chamadas eram a única oportunidade de olhar aquelas pessoas, como elas estavam de fato. Eu me adaptei às novas tecnologias, mas eu sofria com a conexão precária da internet. No primeiro semestre do ano passado, eu estava fazendo um curso online e perdi muitas aulas por causa da conexão ruim. Era mais um transtorno no meio de tantos outros que foram aparecendo. O Zoom é pesado, o Google meet é pesado e depender dessas ferramentas era e é extremamente desafiador quando você mora em área periférica com baixa cobertura de internet. Semana passada eu não pude fazer minha aula de francês porque estava sem internet.

 

A senhora recentemente fez um curso sobre o enfrentamento ao racismo religioso para profissionais e estudantes de Direito, visando o acolhimento das demandas das comunidades tradicionais de terreiro. O que significa esse tipo de ativismo às religiões de matriz africana?

A minha casa foi atacada oito vezes, fiz boletim de ocorrência por causa dessa atrocidade e tive que responder a questionamentos das autoridades tais como “a senhora tem amante?” “o seu marido tem amante?”... me atacaram e tentaram me desmoralizar. Quando digo que o direito foi o arcabouço da minha militância é sobre esses pré-julgamentos, os mesmos utilizados nos crimes de estupro porque ele não cessa quando cessa a agressão. E existe essa cultura de culpar a vítima pela agressão. “A mulher tava com decote muito grande?”, “Ela tava de minissaia?” “Ela tava bêbada?” Até bem pouco tempo não tínhamos uma delegacia especializada em crime de intolerância religiosa. E quantas vezes nós vamos fazer denúncias em delegacias e somos desestimuladas a continuar com esse processo porque os policiais já vão afirmando que “isso não vai dar em nada”? Eu não fiz nada de errado. Eu exerço o meu direito de ter a minha religião. Quantos dos meus irmãos desconhecem os seus direitos? Quantos deles foram tentar fazer alguma denúncia ocorrida nas  comunidades onde moram, mas ali tem um narcotraficante, uma milícia e ele tem de ficar calado? 

 

Sobre esses oito ataques, o que a morosidade dessas investigações diz sobre como as autoridades policiais se comprometem em solucionar casos com essa especificidade na Baixada Fluminense?

Não posso dizer que houve uma morosidade, porque a investigação foi feita. O que aconteceu foi que não se conseguiu chegar a autoria do fato delituoso. Mas houve perícia, perguntou-se sobre o que as pessoas aqui das redondezas achavam de mim, se eu tinha alguma desavença com alguém por aqui. E o delegado da 62ª delegacia de Polícia até se surpreendeu, dizendo que as “pessoas gostam da senhora”, como se fosse uma coisa do outro mundo as pessoas gostarem de mim (risos). Até os evangélicos da rua falaram bem de mim. Eu consegui reverberar a minha situação. Consegui falar com a mídia nacional e internacional de vários segmentos, mas muitos dos meus irmãos não tiveram essa sorte que eu tive. Eu recebi apoio da Ordem dos Advogados do Brasil, tive apoio psicoterápico para tentar me recuperar de estresse pós-traumático. Eu fui muito bem assistida. Mas tantos passaram ou passam por situações iguais às minhas e não têm esse apoio. São pessoas cujo vizinho vira caixas de som em volume alto, e de propósito, em direção ao terreiro ou à residência desse irmão, reproduzindo o barulho que vem dos cultos, pra tentar “evangelizar à força”, digamos assim. Se tudo der certo, a Superintendência de Promoção da Liberdade Religiosa (SUPLIR), que é ligada ao Governo do Estado, vai ter mais força de atuação.

 

Impressionou, na época do incêndio criminoso, a declaração do juiz da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araújo, que afirmou que “a umbanda e o candomblé não seriam religiões, pois não contêm um texto-base, a exemplo da Bíblia, uma estrutura hierárquica, um Deus a ser venerado”. Qual a análise que a senhora faz sobre isso?

Ele desconhece completamente assuntos ligados à religião. Pra ser religião, precisa-se de um território, do idioma e precisamos ter saído de algum lugar. Nós temos a diáspora pra referendar de onde surge a nossa religiosidade. Nós temos Angola, Guiné-Bissau, Benin, Costa Rica, Cuba. Ele exteriorizou o seu ego, a sua soberba e seu racismo religioso. O que ele quis dizer foi: “como é (religião) de preto, não seve”. 

 

Com a volta do governo Lula, reacende a esperança pela concretização de um Estado mais laico?

É uma esperança, sim. Tô muito feliz com a posse dele. Mas estou muito temerosa também, porque estamos vivendo um outro tipo de negacionismo que é o político-partidário, antidemocrático. Ele acertou em cheio quando criou o Ministério dos Povos Tradicionais. Acertou também com a escolha de Anielle Franco para o Ministério da Igualdade Racial. Mas temos de avançar muito ainda. O retrocesso foi gigante. Precisamos trabalhar muito com esse governo para minimizar os efeitos do golpe e de tudo relacionado desse desgoverno que acabou.

 

Tem a questão envolvendo a Lei 10639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. Ela vai completar 20 anos desde a sua criação e há muita resistência em relação a isso...

...Não se avançou de forma alguma. Mas espero que com a criação desses dois ministérios (Igualdade Racial e dos Povos Originários) haja uma efetividade de ações do novo governo e não apenas ações isoladas para que essa lei seja implementada. Hoje nós temos capoeira gospel, escolas de samba sendo dirigidas por evangélicos. Existe contrassenso maior do que isso? Até que ponto chegamos! Porém, as coisas no mundo do samba parecem que estão voltando à normalidade, já que o enredo da Império Serrano desse ano vai falar sobre Arlindo Cruz que fala de Madureira e cuja música cita Iansã.

 

O presidente Lula também sancionou a lei 14.519 que define o dia 21 de março como Dia Nacional das Tradições das Raízes das Matrizes Africanas e do Candomblé. Ficou satisfeita?

Fiquei, pois é pontuar aquilo que dissemos sempre. De que somos resistência e temos o direito de existir. Não é um feriado, não é um dia qualquer. É um presidente afirmando que reconhece a existência de um povo de matriz africana. Não temos a percepção de que está se “reinventando a roda”. O negacionismo à nós infligidos nesses últimos 4 anos foi tão grande que temos uma necessidade de sermos pontuados enquanto existência. Pra esse governo, pra esse Estado, país, existir pra esse Congresso Nacional que é majoritariamente evangélico.

 

A senhora gostaria que os debates sobre racismo religioso fossem mais amplamente vinculados às problematizações sobre a Segurança Pública no Rio de Janeiro? Que mudanças precisam ser feitas?

Tudo começa em se admitir o racismo, esse precisa ser o ponto principal. Porque a minha religião só é atacada porque é religião de preto. Inclusive, o que eles acham de ruim na religião deles, mandam pra nós que é o diabo. Que não existe em nossa liturgia. Que não pode ser associada. Exú, pra nós, é um mensageiro que se comunica em todas as línguas, que leva os nossos pedidos. É preciso entender o processo político que temos vivido. As religiões neopentecostais possuem um projeto político em andamento e está sendo vitorioso, mas ele não começa nos expulsando de onde estamos. É de processo muito anterior. Eles ocupam as comunidades, as penitenciárias, a educação, a saúde, cemitérios, parques florestais, o serviço público, os poderes constituídos e, por fim, a segurança pública. Então como é que você busca ajuda quando o chefe do tráfico em sua comunidade é evangélico? Como é que você vai falar em racismo religioso quando você está em território dominado por uma milícia fortemente armada e que atende aos interesses de igrejas neopentecostais?  Nós estamos assim: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Nós recebemos violência todo dia e de várias formas e origens. Nós não temos sentimentos revanchistas, não revidamos nada! Mas estamos sendo violentados. Quando aconteceu o último ataque, a delegada Marta Rocha me levou para conhecer o delegado Henrique Pessoa, que era da Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância; hoje o delegado está 151ª DP, em Nova Friburgo) e ele me parecia uma pessoa íntegra sobre seu ofício. A milícia, o tráfico e a polícia parece que divergem em um momento, mas se unem em outras situações. Ao mesmo tempo em que temos uma polícia que mais mata jovens negros e de periferia. E o que é pior: a maioria desses meninos que são mortos são evangélicos também. Por que uma igreja precisa de gladiadores ao invés de mensageiros de paz? Um dos trabalhos dos gladiadores, no Império Romano, era matar. Agora esses gladiadores estão no altar. Eu falo de racismo religioso há uns 10 anos, época que essa expressão nem existia. Eu abandonei o termo intolerância religiosa. Porque eu não vejo essas atrocidades como vindas de alguém que professe a sua fé. Porque se você tem fé de verdade, você respeita a fé do outro. Eu não vou sair daqui e ir lá pra fora cooptar pessoas a acreditar nos meus deuses. Os europeus pegavam os escravizados de várias etnias africanas e os rebatizavam com nomes brancos e um dos processos de apagamento cultural de suas origens era a imposição das religiões cristãs. Onde e em que época da História fizemos algo parecido com isso?