05 de abril de 2021

Entrevista do mês: Giordana Moreira, produtora cultural

“A MULHER NÃO PODE SER SUBALTERNA NA ARTE”

Conversamos com a idealizadora do projeto Roque Pense!, que completa 10 anos essa semana, sobre os desafios da produção cultural

da Baixada Fluminense em tempos de pandemia e ataques sofridos por conduzir um festival feminista.

 

Texto: Juliana Gonçalves e Fabio Leon

Imagem: Arte de Fabio Leon sobre fotografia de Danilo Sérgio

 

Um dos grandes resultados alcançados por quem almeja ser empreendedor(a) em alguma atividade, é a diversidade de serviços ou produtos que se concretizam ao longo do tempo. Com a Roque Pense! é um pouco assim. De um festival independente de bandas de rock formadas, em sua grande maioria, por mulheres, no início da década de 2010, cujas edições animaram as noites da juventude de diferentes municípios da Baixada Fluminense, a RP!, como também é carinhosamente conhecida, se transformou em uma rede de mulheres profissionais da cultura que desenvolvem diferentes projetos transmídias de música, cultura urbana e audiovisual. Em 2021, se adaptou à realidade da pandemia e terá sua primeira edição totalmente online. A aventura digital também resultará em um podcast sobre a produção do festival nesse novo formato e oficinas virtuais de produção cultural.

 

Além de levar arte e entretenimento para a casa das pessoas, o festival também gerou 42 oportunidades de emprego para mulheres trabalhadoras da cultura durante a pandemia - sem contar com fornecedores. A ideia da Roque Pense! é que mulheres ocupem cargos que majoritariamente são destinados a homens, possam ter novas experiências profissionais e tenham seu trabalho valorizado e reconhecido. Elas estão no palco, nos bastidores, na área técnica, na criação e na direção.

 

Um dos objetivos da Roque Pense! é produzir arte através do olhar da periferia, que nasce da vivência no território. Por isso, esta edição do festival homenageia três lideranças femininas da cultura e dos direitos humanos da Baixada Fluminense: Mãe Beata de Yemanjá, Mãe Meninazinha de Oxum e a poetisa Lírian Tabosa, através das respectivas performances de Tulanih Pereira, Adrielle Vieira e Valentine, jovens artistas da região.

 

A celebração dos 10 anos do festival Roque Pense! vai acontecer nos próximos dias 09, 10 e 11 de abril, às 20h no canal do RP! no Youtube. A programação conta com a banda “Luiza e os Alquimistas”, a cantora índigena Kaê Guajajara e as rappers da BXD, Afrodite, Lorac Lopez, Lavínia e Athena, que vão contar com o apoio da Dj Moonjay.

 

Conversamos com a idealizadora do festival Roque Pense, a produtora cultural Giordana Moreira.

 

Entrevista a Fabio Leon 

 

Quando despertou a sua paixão pela produção cultural?

Eu amava música, ia pra Praça do Skate (no centro de Nova Iguaçu) para encontrar quem também amasse música. Ia a shows independentes e campeonatos de skate e dizia: "quero viver isso aqui". Eu não tocava, só gostava de escrever. Mas eu estava metida em tudo. Eu criava projetos que achava importante existirem, e ia descobrindo como realizá-los. Só tive consciência que eu já era produtora cultural anos depois de já estar trabalhando profissionalmente. Eu amava as histórias do Nelson Motta e minha referência era a Elza Cohen (criadora da festa “Zoeira Hip Hop”, em 1996, que revelou nomes do gênero como Black Alien, De Leve e Marechal). Mas como uma jovem da periferia de Nova Iguaçu, dura e sem ensino superior, eu não imaginava que poderia ter a mesma profissão que eles.  Eu apenas amava minhas bandas preferidas, e inventava de montar palcos pras bandas tocarem. Com o tempo percebi que aquela sensação de palco montado, quando a banda entra pra passagem de som, era o que eu queria sentir pro resto da vida. Essa paixão continua até hoje.  

 

Quando e como surgiu o Roque Pense? Quais foram os primeiros desafios e quais são os desafios enfrentados atualmente, em especial sob o contexto da pandemia?

A Roque Pense! surgiu da simples ideia de ser promover shows de rock, mas com mulheres. A ideia parece simples, mas a motivação é tensa. Só ver homens no palco, e também na técnica, na direção, na criação e como donos de espaços, equipamentos, recursos, não era “normal”. Eu nunca me conformei com isso. A situação colocava as mulheres que já atuavam na área, como subalternas ou coadjuvantes, nunca como sujeitos da criação artística. E afastava as que aspiravam esses lugares. Esse desafio eu encarei em minha trajetória como Produtora Cultural e só o fato da RP! existir já levantava isso no cenário. Depois foi o desafio de produzir arte em território popular, a chamada periferia. Isso nós encaramos com a prática de redes e colaboração, sabedoria das ruas da Baixada Fluminense. Nesses dez anos já realizamos muitas iniciativas e geramos um imensurável impacto social. Mas hoje o desafio é o mesmo que encaramos no começo em 2011, que sentimos em 2013, que nos abalou em 2016 e que nos arrasta em uma crise profunda da cultura desde 2018: continuar fazendo arte como trabalho. Na periferia, isso sempre esteve presente, muitas vezes temos um emprego ou subemprego em outra área, pra poder trabalhar com arte nas horas livres. No entanto, nos últimos anos reivindicamos ações que valorizem o setor criativo na região, pois nessa geração queremos que a cultura seja a primeira opção de emprego. Arte, audiovisual, tecnologia, entretenimento também são necessidades da periferia. Mas agora com a vida das pessoas ameaçadas por essas crises sanitária, política, econômica, a trabalhadora da cultura está como todo trabalhador brasileiro, lutando para sobreviver. Apesar disso se olharmos os impactos positivos da Lei Aldir Blanc, está na internet uma amostra deste pólo cultural fluminense, que nunca teve oportunidade de ser produzido nessa abrangência. Nosso Festival Roque Pense! Transmídia é uma delas, conseguimos realizar todos nossos projetos transmídia em nosso canal no Youtube, nossa potência está aí pra todos assistirem.   

 

O Roque Pense é um projeto em que o protagonismo é das mulheres. Há muito machismo na produção cultural da Baixada Fluminense? Pode contar um caso sofrido por você ou que ouviu a respeito?

Existe machismo em todo lugar, e no cenário cultural da Baixada não é diferente. Quando um coletivo ou projeto se assume feminista existe uma cobrança de se construir um “espaço seguro”, mas ninguém sabe como, na prática, se consegue isso, porque o machismo está nas estruturas, nas relações de poder e na cultura. Uma situação bizarra que passamos foi em 2015, quando uma ex integrante do coletivo constrangeu o festival publicamente por selecionar uma banda em que um músico, com quem teve uma relação, era machista. Tiramos a banda e fizemos o cara ir se apresentar em uma organização para homens agressores. Sem conseguir dialogar com as denunciantes, quando apuramos a real história, descobrimos que, na verdade, ele agredia e perseguia outra mulher, sua ex companheira. Eu a acompanhei na assistência psicológica e na DEAM. Fizemos uma reunião pública com nossas apoiadoras, participamos de diversos eventos feministas abertos para o debate no mês do ocorrido. No entanto, todos que nos constrangeram, a esmagadora maioria de fora da Baixada, nunca se interessaram pela historia verdadeira. Nem mesmo se manifestaram quando esse músico tocou em outros festivais (não feministas) mais ligados a classe média. Esse indivíduo nunca foi exposto publicamente, como nós fomos. Percebi que iniciativas culturais periféricas e feministas são mais passíveis de serem atacadas, devido a uma relação de poder. Além de toda a dificuldade pra se viver de arte no país, quando é um projeto feminista enfrentamos a misoginia.

 

Você é uma crítica ferrenha sobre as narrativas presentes nos cadernos culturais dos grandes jornais. O que desperta a sua crítica? E o que há de mais agravante a ser criticado?

Faz parte do imaginário coletivo, ainda nos dias de hoje, que quando se ouve ou lê Baixada Fluminense na mídia, já esperamos por alguma notícia de violência ou miséria. A Cultura vem sendo a parte positiva da região há alguns anos. No entanto, ocupamos somente os cadernos locais, sempre com um cunho social ou enfocando a precariedade que nos impõem. Acredito que isso alimenta um paternalismo de que arte na periferia é para salvar pobres do perigo da criminalidade. Ou que não é feita com profissionalismo e excelência, se está fora das lógicas da grande indústria cultural. Quando, na verdade, realizamos produções artísticas inovadoras, pois inovar é resolver problemas que ninguém tinha conseguido resolver. Quando uma jovem se forma em artes e ganha o mundo, mesmo de dentro de seu quarto em Belford Roxo, isso é uma inovação. Ou seja, apesar do contexto desfavorável para nascer ali uma vocalista de death metal adorada por seu vocal, um DJ campeão do DMC Brasil, o maior encontro de graffiti voluntário da américa Latina, um Festival transmidia, feminista e de música independente, nós o fazemos. E isso é uma narrativa que a grande mídia ainda não entendeu, mas é  incansavelmente repetida por nós. Em 2015 conseguimos uma capa do Segundo Caderno com o título “Baixada em Alta”, em uma dessas tentativas. Mas isso é uma disputa ainda hoje.  

 

Que balanço você faz do projeto e qual o futuro do Roque Pense?     

Nessas comemorações de dez anos mostraram que a RP! é um processo. Além dos projetos e dos produtos culturais, das profissionais envolvidas na produção deles, do público impactado, nós produzimos histórias importantes de serem contadas. Eu era uma jovem de roupa preta e cabelo descolorido em uma praça do skate que amava música. A arte era minha vocação e se eu não insistisse nisso por paixão pela música eu não seria a profissional e cidadã que sou hoje. Em certo momento, quando a RP! espalhou essas possibilidades para outras mulheres, virou uma história além da minha. São décadas de artivismo em rede da Baixada, de arte feminista no circuito alternativo, e a RP! surgiu disso tudo. E porque existem milhares de artivistas que querem que esses processos gerem um novo circuito de produção cultural. Mas é importante ressaltar que, mesmo com toda essa natureza de impacto, a Roque Pense! É um empreendimento cultural importante para a economia criativa da Baixada e da metrópole fluminense. Só em nesta edição do festival empregamos 54 pessoas e 15 empresas fornecedoras, estamos alimentando nosso canal com arte e conteúdo formativo, e vendendo as camisas de dez anos. O futuro, assim como muitos, eu não saberia te responder agora nesse momento terrível do país. A única certeza que eu tenho é que arte sempre vai existir. Eu continuarei insistindo, por vocação, e a RP! continuará também por que é importante, para a Baixada, para as mulheres e para muitas pessoas, que ela continue a existir também.  

 

SERVIÇO

Festival Roque Pense!

Dias 09, 10 e 11 de abril, às 20h

Exibição no YouTube: https://bit.ly/38NbocM