13 de maio de 2024
Artigo de opinião
Entre o 13 de maio e as memórias negras insurgentes da Baixada Fluminense – A luta pela
liberdade nos quilombos de Iguassú
por Natália Oliveira de Assis - Licenciada em Ciências Sociais pela UFRJ e mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias da FEBF-UERJ.
Em nosso país, o dia 13 de maio é marcado como o Dia da Abolição da Escravidão. Tendo como marco a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, essa data constitui uma representação da libertação dos escravizados a partir da figura da princesa, retratada como redentora. Junto a outras datas importantes para a história do país, centradas nas ações de figuras da nobreza, promovem a construção de um imaginário social onde as mudanças e transformações políticas e sociais ocorreram/ ocorrem de uma forma messiânica, a partir da benesse, da coragem e do heroísmo de grandes personagens pertencentes aos grupos dominantes. E é assim que, na maioria das vezes, lembramos – ou somos lembrados – desse acontecimento relacionado a história do país, a despeito do histórico de lutas da população negra – livre e escravizada – e demais grupos sociais pelo fim da escravidão[1]. Com isso, partindo de discussões sobre a formação de uma memória coletiva nacional, nos levo a refletir sobre os interesses e as intencionalidades envolvidas na constituição e consolidação de uma memória da abolição relacionada ao 13 de maio e a assinatura da lei pela princesa Isabel.
Os estudos da memória em seu aspecto social nos mostram que o lembrar é um ato coletivo, que tem como suportes a própria cultura – os símbolos, as ideias e as representações que circulam em nossa sociedade – e a produção de livros, quadros, comemorações, datas, que nos auxiliam na construção e consolidação de nossas lembranças. Nas sociedades capitalistas, estruturadas a partir de diversas desigualdades e relações de opressão – de raça, classe, gênero e território para citar algumas – essa construção social da memória precisa ser entendida a partir dessas relações desiguais. Os estudiosos que se debruçaram sobre a questão da memória coletiva[2] mostram que a memória foi/é um recurso utilizado pelos grupos que detinham/detêm o poder político e econômico nas sociedades do passado e do presente, que fabricam uma memória coletiva relacionada aos seus interesses para a manutenção e legitimação de sua dominação através da manipulação da memória, selecionando o que lembramos (ou esquecemos), como ou quando lembramos, a partir de quais símbolos, pessoas, datas. Neste sentido, a construção (ou destruição) dos suportes sociais da memória pelos grupos e agentes que estão no poder, precisam ser entendidos também enquanto instrumentos para a manutenção das relações hoje existentes na sociedade.
A história do Brasil, escrita e vivida, é permeada dessas ações dos grupos dominantes na manipulação da memória coletiva. O apagamento da história e os ataques as expressões culturais afro-brasileiras é um dos aspectos dessa manipulação. Já na década de 1970 a historiadora Maria Beatriz Nascimento criticava a produção de uma história do Brasil que omitiu e negligenciou fatos importantes da história do negro[3]. Em relação à história de Nova Iguaçu e da Baixada Fluminense, a historiadora Amália Dias e o historiador Nielson Bezerra, que analisaram as primeiras obras que abordavam a história local, apreendem que a escrita da história local, inaugurada na década de 1930 a partir da intervenção de grupos e atores da elite agrária e política local[4], privilegiou os grandes proprietários de terra e políticos locais, invisibilizando e relegando ao esquecimento as lutas dos escravizados e seus descendentes, pertencentes a classe trabalhadora[5].
Em oposição a essa história centrada nos personagens da classe dominante e a fabricação de uma memória sobre o fim da escravidão consolidada na ação da princesa, trago para o debate a rebeldia de homens e mulheres negras – entendidos enquanto sujeitos e sujeitas da história – que lutaram pela sua libertação, evocando a insurgência negra quilombola do recôncavo da Guanabara, que hoje chamamos de Baixada Fluminense, no século XIX. Reproduzir e conhecer essas histórias, que são pouco contadas nas escolas e nos espaços hegemônicos é importante para a ampliação dos quadros de referência a memória local e para a compreensão das complexas relações que compõem a sociedade e da atuação de diversos grupos sociais na luta pelo fim da escravidão.
As lutas pela liberdade no recôncavo da Guanabara no século XIX – A Hidra de Iguassú
A instauração de quilombos na região de Iguassú[6] no início do século XIX, parte da reação africana contra o sistema escravista, demonstra os conflitos sociais existentes no território, então recôncavo da Guanabara, no período colonial e imperial. Segundo o historiador Flávio Gomes[7], a mais antiga referência sobre quilombos localizados na região data de 1812. De acordo com documentos da polícia da época analisados pelo pesquisador, essas comunidades situavam-se às margens dos rios Iguaçu e Sarapuí, nas freguesias de Nossa Senhora do Pilar de Iguaçu e Santo Antônio de Jacutinga, onde hoje se localizam os municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu. Formados por escravizados que fugiam das fazendas existentes na região, os quilombos causavam diversos prejuízos econômicos ao poder local. Diversas diligências e investidas policiais, encabeçadas pelas autoridades locais que buscavam a destruição dessas comunidades, foram realizadas entre os anos de 1812 e 1876, todas sem êxito. Devido à dificuldade de extingui-los, esses quilombos ficaram conhecidos como a Hidra de Iguassú, alusão a Hidra de muitas cabeças que se regeneravam ao serem cortadas, presente na mitologia grega.
Importante que entendamos que no modo de produção escravista presente no Brasil Colônia e Império, as mulheres e os homens africanos e seus descendentes eram vistos enquanto mercadorias, parte da propriedade dos fazendeiros proprietários de terra e, na grande maioria das vezes, eram submetidos a tratamentos desumanos e cruéis. A fuga, e a consequente criação de quilombos, era uma recusa a essa condição e a busca por um refúgio e pela humanização, sendo também uma forma de luta contra o regime escravista. Ainda segundo o historiador Flávio Gomes[8], os quilombos de Iguassú, enquanto comunidades negras autônomas, tinham uma complexa organização econômica, social e cultural. Os homens e mulheres que viviam nessas comunidades realizavam o cultivo de diversos alimentos, bem como a caça e a pesca, para sua subsistência, bem como a extração de lenha dos mangues da região, adquirindo outros produtos necessários a manutenção de sua organização com a troca dos excedentes dessa produção e de saques a fazendas e embarcações.
Esses estudos nos mostram que essas não foram comunidades isoladas, mas sim que tiveram uma intensa relação e atuação na sociedade colonial e imperial, impactando a economia local. As negociações dos quilombolas de Iguassú com os comerciantes locais e a população negra ainda escravizada nas fazendas da região, demostram as estratégias de diversos grupos sociais na realização de suas necessidades e as redes clandestinas de comércio, e também solidariedade, apoio e proteção, que existiram na época e auxiliaram a causa quilombola, que resistiu por quase um século.
Diversos mecanismos legais e ideológicos – haja vista os ideais racistas presentes no movimento eugenista brasileiro no início do século XX –, criados antes e depois da ficção abolicionista do 13 de maio de 1888, impossibilitaram a efetiva integração dos homens e mulheres negras a sociedade, “libertados” sem nenhum tipo de reparação social e econômica. A manutenção das desigualdades na passagem do modo de produção escravista para o modo de produção capitalista, promove a contínua desumanização da população negra, que ainda nos dias atuais não tem acesso a direitos sociais básicos. Portanto, que neste 13 de maio continuemos na luta pela melhoria das nossas condições de vida evocando em nossas lembranças os quilombolas e os homens e mulheres negras que, no passado, buscaram a construção coletiva de outras possibilidades de vida frente a destruição promovida pelos grupos dominantes.
O quilombo é um avanço, é produzir ou reproduzir um momento de paz. Quilombo é um guerreiro quando precisa ser um guerreiro. E também é o recuo se a luta não é necessária. É uma sapiência, uma sabedoria. A continuidade de vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso, e mesmo quando ele quer matar você. A resistência. Uma possibilidade nos dias da destruição. – Maria Beatriz Nascimento[9]
[1] Seguindo as discussões do sociólogo Clóvis Moura no livro “Os quilombos e a rebelião negra”, Editora Dandara, 2022, destaco a formação de quilombos e as insurreições e revoltas negras, presentes na história do país desde o século XVII, como elemento fundante das lutas contra a escravidão.
[2] Nomeadamente, os historiadores Michael Pollak e Jacques Le Goff.
[3] Ver entrevista para o Documentário da Senzala ao Soul (1977). Disponível em: https://youtu.be/5AVPrXwxh1A.
[4] Ver artigo de Amália Dias no livro “De Iguassú à Baixada Fluminense: Histórias de um território”, Editora Appris, 2019.
[5] Ver artigo de Nielson Bezerra no livro “De Iguassú à Baixada Fluminense: Histórias de um território”, Editora Appris, 2019.
[6] Forma que o nome era escrito na época.
[7] Ver ensaio de Flávio Gomes no livro “Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil”, Companhia das letras, 1996.
[8] Ver ensaio de Flávio Gomes no livro “Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil”, Companhia das letras, 1996.
[9] NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e intelectual: possibilidade nos dias de destruição. São Paulo: Filhos da África, 2018.