22 de janeiro de 2020
Artigo
Novo dilema sobre velhas questões: a crise hídrica no estado do Rio de Janeiro
por Sarah Lawall, professora de Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ (campus Nova Iguaçu)
A água é um recurso natural vital a manutenção das espécies no planeta. Nunca validamos tanto esta frase como agora, que enfrentamos uma crise hídrica por distribuição de uma água longe de ser insípida, inodora e incolor (para não dizer contaminada) para 9 milhões de habitantes. A problemática é tema central dos últimos dias nos noticiários e mídias sociais, porém, essa crise é anunciada há décadas não só no Estado do Rio de Janeiro, mas no país, quando pensamos nos baixos investimentos feitos nas cidades brasileiras em saneamento básico.
Segundo a Lei Federal nº 11.445 de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico, este pode ser definido como o "conjunto de serviços, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo de águas pluviais urbanas". A falta de tratamento de esgoto é grave e estamos inundando nossos rios de efluentes domésticos e industriais, sem considerarmos que onde se lança esgoto pode ser o ponto de captura de água que vai abastecer centenas a milhares de pessoas, como é o caso de agora, no sistema Guandu.
Para termos ideia, em 2019 foi divulgada uma pesquisa pela organização “Trata Brasil” com ranking de 100 cidades quanto a eficiência e investimentos no saneamento básico. Municípios da Baixada Fluminense, em especial Nova Iguaçu (82º), São João de Meriti (89º), Duque de Caxias (91º) e Belford Roxo (95º) apresentavam os piores dados relacionados ao tratamento do esgoto e investimentos em saneamento básico. Estas colocações indicam a inexistência de tratamento de esgoto, ou seja, mais de 2, 5 milhões de habitantes lançam diretamente nos rios seus efluentes (despejo no vaso sanitário, banho, lavagem de louças, etc) que poluem e contaminam os mananciais. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS, 2017) o Estado do Rio de Janeiro atende 92,15% dos domicílios com água tratada, porém, apenas 33,70% de esgoto, sendo este praticamente inexistente para a região da Baixada Fluminense.
Esta questão gera a principal fonte de poluição da Baía de Guanabara e da área de captura do sistema de abastecimento do Guandu que é alimentado por afluentes, como Queimados, Ipiranga e Poços que correm pela Baixada Fluminense levando esgoto a zona de captura de água e transposição do Paraíba do Sul, que corta os estados de São Paulo e Minas Gerais. Podemos afirmar que a CEDAE, responsável pelo abastecimento da Baixada Fluminense, transforma esgoto direto em água tratada por conta da tríade da ocupação territorial na região metropolitana, ou seja, falta de planejamento e gestão urbana secular, crescimento desordenado da região da Baixada Fluminense e centralização na captura e tratamento de água, no sistema Guandu.
A sociedade (da sociedade civil aos gestores públicos) ignora, por falta de conhecimento geográfico, o sistema hidrográfico e a gestão dos recursos hídricos, muito baseado na máxima de que temos água em abundância e que as crises hídricas são pontuadas no semiárido nordestino. Assim, não valorizamos a água e não aprendemos de forma eficiente a olhar para o rio como um elemento integrante de um sistema composto de nascentes, morros (divisores de água), afluentes e rio principal que drena os fluxos de água para uma saída (foz). Muito menos temos a noção sistêmica para pensarmos que o que se faz aqui em cima (montante) pode afetar lá embaixo (jusante).
Olhamos para o rio como valão, córrego sujo e fétido, expurgo, depósito de lixo e por vezes, sofá. O rio é para o lançamento do esgoto e culturalmente pensamos assim. Só temos relações saudosistas, do tempo que o rio era rio e não valão, na percepção dos mais velhos, que relatam ambiente de água limpa e atividades de lazer nos rios da região metropolitana. Hoje esta prática fica restrita as áreas de nascentes próximas aos maciços costeiros da Baixada e Rio de Janeiro, além da própria Serra do Mar.
A verdade que toda “ignorância” nos conduziu ao estado torporoso. Estamos atônitos e só esperamos alguma solução por parte da CEDAE ou pronunciamento da culpa (de quem mesmo?). Até o momento nossa ação é gerar renda a quem vende água mineral e deflagrar mais uma vez as diferenças econômicas e sociais, hoje estamos dividimos em quem tem acesso ou não a água mineral. Quantas famílias da Baixada Fluminense e Comunidades Cariocas tem condições de comprar água potável? Estamos de mãos atadas e não sabemos muito como lidar. A junção crescimento urbano desordenado, ineficiência generalizada da gestão pública e baixo entendimento e cobrança da sociedade para a gestão hídrica culminou nessa crise sem precedentes.
Não temos a menor ideia dos efeitos do consumo desta água à saúde à médio e longo prazo. Não sabemos muito sobre a previsão de melhoramento da qualidade e o tempo de resposta entre a ação dos novos filtros de carvão ativado e água que chegará nas nossas torneiras. Uma vez o sistema de distribuição (canos e reservatórios) contaminado, qual é o tempo de recuperação e a ação do órgão gestor da água para descontaminação? Não sabemos também, apenas esperamos e esperamos, continuamos fazendo nossos cafés com gosto de barro, enquanto a conta chegará normalmente em nossas casas.
Pagamos e caro pela ineficiência da gestão das águas na região metropolitana do Rio de Janeiro, assim como no país como um todo. Para além da falta de planejamento, a escolha pelo modelo de megaconstrução foi equivocada aqui e em todo Brasil. Concentrar no sistema Guandu o tratamento e captura de água os principais municípios do Estado do Rio de Janeiro é geopoliticamente frágil e podemos (como estamos) pagar caro por isso.
O resultado principal deste acumulado de equívocos é o que temos agora, a oferta da água com a presença de geosmina, substância tóxica produzida por microorganismos encontradas em locais de excesso de matéria orgânica oriunda dos efluentes domésticos. Sendo assim, temos que transformar diretamente o esgoto misturado a sedimentos, carregados de áreas degradadas e erosão, em água potável, na ETA (Estação de Tratamento de Água). E a conta chegou.
Por sermos o país das águas, as ações acerca da gestão das águas no Brasil são bem recentes, principalmente a partir da Política Nacional dos Recursos Hídricos, lei das águas, nº 9.433/1997. Esta lei impulsionou a ação coletiva descentralizada de se pensar a produção, armazenamento, tratamento e distribuição das águas utilizando a bacia hidrográfica como unidade territorial de gestão. O papel dos Comitês de Bacia Hidrográfica é fundamental para garantia da qualidade e quantidade de água, pois trata-se de estabelecer um diálogo acerca da gestão hídrica entre diferentes segmentos da sociedade civil e gestores do espaço (público e privado). Embora, tenha tido avanços na forma de incorporação de diferentes agentes e o recorte físico da paisagem, ainda temos muito a evoluir no âmbito da intercessão entre os órgãos públicos, privados, sociedade civil para pensarmos que a água é um de todos.